quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Uma análise criteriosa da ADI 484/PR, por Herbert Almeida

Publico a análise de Herbert Almeida, que gentilmente me foi enviada, sobre o tema que envolve a ADI 484/PR, que foi discutida nas postagens anteriores. 

Trata-se de uma análise lúcida e criteriosa que muito contribuirá. Herbert fez uma investigação que chegou às próprias fontes do Voto da Ministra Carmen Lúcia. 

"Boa noite, professor!

Como você vem realizando diversos apontamentos acerca da situação dos procuradores autárquicos nos Estados, muito pertinentes por sinal, mas levando em conta que sempre somos questionados sobre o alcance do voto vencido da Ministra Cármen Lúcia na ADI 484/PR, gostaria de ressaltar alguns pontos que poderiam ser também trabalhados em suas matérias, caso entenda conveniente:
1-     A Pendência do julgamento definitivo da ADI 484/pr:
A ADI 484/PR ainda não transitou em julgado. Encontra-se pendente de julgamento embargos de declaração (da Assembleia Legislativa, salvo equívoco) que destacam algumas inconsistências com o julgamento levado a efeito na ADI 175/PR (esta sim transitada em julgado). Não acredito que haverá o conhecimento do recurso na ADI 484/PR, o que não legitima que seja ela citada sistematicamente como fato consumado ou como posicionamento dominante do STF.
Além disso, dentre os votos proferidos na ADI 175/PR imposta destacar parte da fundamentação desenvolvida no Voto Vista do Eminente Senhor Ministro Neri da Silveira (pags. 42 a 48). Negrito e sublinho no texto original (abaixo transcrito) a parte que mais interessa aos autárquicos e fundacionais, principalmente naqueles Estados onde as Constituições já trataram das atribuições de assessoria, consultoria e representação jurídicas (das entidades personificadas) apartadas da PGE:
“Tenho, assim, que, só quanto ao último (o Executivo), poderá assumir algum relevo a controvérsia sobre ser indissociável, da Procuradoria do Estado, a tarefa de assessoramento, entregue pela Constituição do Paraná, a uma carreira especial, sob a coordenação da Procuradoria-Geral do Estado.
(…)
Nem assim, entendo, porém, que, do citado dispositivo (o art. 132), se possa extrair malha tão estreita, a subjugar as Constituições estaduais, a ponto de impedir a existência (a par das dos Procuradores) de carreiras especiais, voltadas ao assessoramento jurídico, mas sob a coordenação da Procuradoria-Geral do Estado de modo a assegurar a uniformidade de jurisprudência administrativa, onde julgo residir escopo de norma da Carta Federal. Não em alguma reivindicação de caráter corporativo.
(…)
Cuida-se ademais, de situações peculiares aos serviços de consultoria, assessoramento jurídico e representação, judicial e extrajudicial, de autarquias e fundações, do âmbito estadual, sobre as quais cumpre entender, há de estar reservado, ao Estado-membro dispor, na sua auto-organização, ao ensejo em que se implanta uma nova ordem constitucional.
2-     O Fundamento do voto vencido da Ministra Cármen Lúcia, baseado em grande parte no trabalho monográfico de Marco Túlio Carvalho Rocha, Procurador do Estado de Minas Gerais, intitulado “A Unicidade Orgânica da Representação Judicial e da Consultoria Jurídica do Estado de Minas Gerais” (in Revista de Direito Administrativo, nº 223; jan./mar. 2001, Rio de Janeiro), adotou viés interpretativo diverso do que concluiu o estudo citado.
Transcrevo parte do trabalho do autor omitida no voto apresentado na ADI 484/PR pela Ministra:
As 'procuraturas constitucionais' são os órgãos cujos estatutos básicos encontram-se disciplinados nos arts. 127, 129, 131, 132, 133 e 134 da Constituição da República, voltadas cada uma delas a conjuntos de interesses característicos.
O primeiro conjunto de interesses envolve o que o autor denomina de 'advocacia da sociedade', estando a cargo do Ministério Público. O segundo conjunto é o dos interesses públicos estabelecidos em lei e cometidos ao Estado em seus desdobramentos políticos (União, Estados e Distrito Federal); a função correspondente a esse conjunto é a 'Advocacia de Estado' e as procuraturas que as tem a seu cargo são a Advocacia-Geral da União (art. 131, Const. da Rep.) e as Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal (art. 132, Const. da Rep.). O terceiro conjunto de interesses é caracterizado pela insuficiência de recursos daqueles que devam ou queiram defendê-los: são os interesses dos necessitados, e a 'procuratura' que lhe corresponde é a Defensoria Pública (art. 134, Const. da Rep.).
Por fim, ressalta MOREIRA NETO, às três procuraturas constitucionais compete 'a função de controle institucional de provedoria, sendo, portanto, públicas não só quanto à finalidade mas também quanto aos agentes, pois são exercidas por agentes públicos (...)'4 .
Outra característica comum às ‘procuraturas constitucionais’ é a essencialidade de suas funções: são órgãos de Estado, isto é, não são meros órgãos administrativos de caráter contingente. Sua existência advém do quadro institucional adotado pela Constituição da República de 1988, sendo, por isso, de existência necessária.
Não se pode olvidar que a Constituição da República não esgota o quadro da advocacia pública e, notadamente, das procuradorias públicas, incluindo-se indubitavelmente nesses conceitos as procuradorias dos municípios (típica Advocacia de Estado), e as procuradorias das pessoas jurídicas de direito público, de autarquias, empresas públicas, etc.
(…)
Assim temos que os entes dotados de personalidade jurídica possuem ordinariamente interesses imediatos distintos de seus interesses públicos finalísticos. Têm, por isso, interesse misto. Para cuidar dos assuntos que não coincidem com os interesses do ente político aos quais são afetos[1], esses entes devem possuir cada qual seu corpo jurídico próprio”. [a remissão não consta no original]
(...)
“Vale relembrar que não são da competência das Procuradorias de Estado os assuntos que se referem ao Estado-ordem jurídica (em oposição ao Estado-pessoa jurídica). A defesa da ordem jurídica estatal compete ao Ministério Público, nos termos do art. 127 e ss. Da Constituição da República (cf. nº 1 supra).
(...)
No aspecto subjetivo tanto a representação judicial quanto a consultoria jurídica a que se refere o art. 132 da Constituição da República sofrem limitações: nos estritos termos do dispositivo constitucional, elas somente são devidas em proveito das respectivas unidades federadas. Ou seja: o Procurador do Estado somente pode intervir nos processos judiciais que versam sobre os interesses do Estado federado que representa, e somente para representá-lo. Também a consultoria dos Estados somente tem lugar em prol de seus interesses imediatos.
É da competência e atribuição exclusiva dos Procuradores dos Estados a representação judicial e a consultoria jurídica de todos os órgãos da administração direta uma vez que esses não possuem personalidade jurídica distinta: os atos por eles praticados são atos de Estado, diretamente, sem mediação.”
3-  A confusão sobre o alcance dos termos “Poder Executivo” e “Administração Pública” nos julgados pós 2012 (ADI 484 PR) feita em diversos acórdãos do STF que acabam dando sustentação à argumentação da ANAPE:
Neste ponto ressalto o “CAPÍTULO II, DO PODER EXECUTIVO, Seção I, DO PRESIDENTE E DO VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA” da CF que dispõe: “Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.” (que por simetria, no âmbito estadual, equivale ao Governador e seus Secretários).
O Poder Executivo do Estado-membro está inserido, portanto, nos termos da própria Constituição Federal, no conceito de Administração Pública Direta[2], do mesmo modo que estão os demais Poderes da República, assim como seus respectivos órgãos despersonificados.
O mesmo entendimento pode ser extraído do disposto no art. 49, inciso X, da CF, que, mais uma vez, aponta expressamente para a necessária distinção entre “Poder Executivo” e “Administração Indireta”.
Penso ser este o alcance semântico dado ao termo “Poder Executivo”, utilizado na ADI 881/ES e na maioria dos julgados que se seguiram:
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O Decreto-Lei 200/1967, em seu art. 5º, inciso I, define autarquia como o “Serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.”
Seriam estas as observações que entendo pertinentes e que extrai dos estudos que tenho feito sobre a situação vivida em Goiás, objeto inclusive de duas ADI's no STF de autoria da ANAPE, com conclusões distintas tanto da parte da AGU quanto da parte da PGR. A impressão que tenho é que tais órgãos não se aprofundaram no estudo da questão para emitirem seus últimos pareceres ou realmente compraram a tese defendida pela ANAPE da unicidade da representação dos órgãos e entes NAS (e não das como esta inscrito na CF) unidades federadas.

Abraço fraterno,

Herbert Oliveira Carrara de Almeida
Gestor Jurídico (atualmente licenciado)
Assessor Jurídico do Ministério Público Estadual"


[1] AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADIMPLEMENTO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO. TRÂNSITO EM JULGADO ANTERIOR À EDIÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR Nº 66/2009. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA GOIASPREV. I- A GOIASPREV, como entidade gestora única do Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos - RPPS - e do Regime Próprio de Previdência dos Militares do Estado de Goiás - RPPM, é responsável pelo pagamento de benefícios decorrentes dos aludidos regimes, ressalvados apenas os casos de débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários insatisfeitos, nos termos de expressa dicção legal (art. 25, §3º, LC 66/2009).  II- No caso, como a sentença objeto do feito executivo transitou em julgado em 23/09/2008, portanto, em momento anterior à edição da Lei Complementar nº 66/09, que criou a Goiasprev, urge reconhecer que a responsabilidade pelo pagamento da obrigação deve ficar a cargo do Estado de Goiás, nos termos da interpretação literal do art. 25, § 3º do referido diploma normativo, impondo por sua vez, a exclusão da  autarquia estadual do polo passivo da demanda.  AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO.
(TJGO, AGRAVO DE INSTRUMENTO 447806-57.2011.8.09.0000, Rel. DES. LUIZ EDUARDO DE SOUSA, 1A CAMARA CIVEL, julgado em 17/04/2012, DJe 1052 de 27/04/2012);
[2] - Neste Trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia, preferido nos autos do RE 602381, Tribunal Pleno, julgado em 20/11/2014, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-023 DIVULG 03-02-2015 PUBLIC 04-02-2015, fica clara a exata delimitação e alcance dos termos :
5. Observa-se do histórico legislativo relativo à Procuradoria-Geral Federal ter-se estruturado ela segundo o que posto em leis ordinárias, mesmo e principalmente no período posterior à Constituição de 1988. Tanto tem a sua razão de ser.
O art. 131 da Constituição da República não tratou da Procuradoria- Geral-Federal ou dos procuradores federais, ou seja, esse dispositivo constitucional não disciplinou a representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas (Administração Indireta), mas apenas da União (Administração Direta).
O art. 131 da Constituição tratou da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, no seu § 3º, conforme se observa na sua transcrição:
“Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. § 3º Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.”
Portanto, à representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais não se aplica o art. 131 da Constituição da República, pelo que a Lei Complementar n. 73/1993 (Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União) limitou-se a dispor, em seu art. 17, que os “órgãos jurídicos” das autarquias e das fundações públicos são vinculados à Advocacia Geral da União.

3 comentários:

Anônimo disse...

Excepcional! Excelente artigo. Parabéns

André L. M. Uchoa disse...

Parabéns! Mais claro impossível. Temo, no entato, a decisão meramente cooperativa que venha do STF devido as visitas em seus gabinetes.

Anônimo disse...

A intenção, pelo visto, foi apenas de apontar a falácia no discurso do qual vem se utilizando algumas entidades representativas de classe, com o objetivo de modificar o modelo de advocacia pública que já se instalou e que funciona adequadamente no Brasil (com diversas injustiças há que se destacar). Se observarmos as petições iniciais da ADI 175/PR e ADI 484/PR veremos que sequer é questionada a atuação de advogados outros (fora da carreira das PGEs) na Administração Indireta. O intuito da ANAPE até 2012 sempre foi defender a exclusividade da representação judicial e a consultoria jurídica na Administração Direta às respectivas Procuradorias-Gerais. Observe, no entanto, que o art. 132 da CF não trata da representação extrajudicial e nem da assessoria jurídica - estas mais limitadas, invisíveis aos olhos externos, mas observável na atuação proba e zelosa do Administrador, indispensável para a certeza da legalidade em diversos atos administrativos praticados diariamente, como, por exemplo, o acompanhar da assinatura de um TAC (análise jurídica sem emissão de parecer) ou mesmo a redação da minuta de um contrato, aconselhamento direto do Administrador. Atividades que não caracterizam consultoria e estariam fora da redação dada ao art. 132 da CF. Ainda em relação à atuação de advogados assessores e representantes extrajudiciais na Administração Direta é interessantíssima a observação que faz o Ministro Néri da Silveira, no penúltimo parágrafo da parte do voto transcrito, já demonstrando (naquela época) sua preocupação com as reivindicações de caráter corporativistas, a apontar possível desvio de finalidade: “Nem assim, entendo, porém, que, do citado dispositivo (o art. 132), se possa extrair malha tão estreita, a subjugar as Constituições estaduais, a ponto de impedir a existência (a par das dos Procuradores) de carreiras especiais, voltadas ao assessoramento jurídico, mas sob a coordenação da Procuradoria-Geral do Estado de modo a assegurar a uniformidade de jurisprudência administrativa, onde julgo residir escopo de norma da Carta Federal. Não em alguma reivindicação de caráter corporativo.” E finaliza tratando de forma expressa sobre a Administração Indireta: “Cuida-se ademais, de situações peculiares aos serviços de consultoria, assessoramento jurídico e representação, judicial e extrajudicial, de autarquias e fundações, do âmbito estadual, sobre as quais cumpre entender, há de estar reservado, ao Estado-membro dispor, na sua auto-organização, ao ensejo em que se implanta uma nova ordem constitucional”. Tudo isso constou do julgamento da ADI 175/PR e foi reafirmado pela ADI 484/PR, apesar do voto vencido da Ministra Carmen Lúcia consignar de modo distinto.