Introdução. A pergunta é relevante e momentosa.
Recentemente o Município de Campos dos Goytacazes realizou empréstimo junto ao
Banco do Brasil para antecipar receitas decorrentes dos royalties do petróleo. Ainda
que se possa empregar outro nome para a operação, caracterizou-se como operação
de crédito como forma de antecipação de receita. A questão foi submetida à
justiça e está pendente de decisão.
O objetivo aqui é refletir sobre alguns pontos
do tema.
Conceitos básicos para
entender a questão.
Inicialmente há que se definir o que é uma operação de crédito. Segundo o art.
29, III, combinado com o seu § 1º, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF),
trata-se de compromisso financeiro assumido em razão de qualquer um dos
seguintes atos:
a)
Mútuo;
b)
Abertura
de crédito;
c)
Emissão
e aceite de título;
d)
Aquisição
financiada de bens;
e)
Recebimento
antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços;
f)
Arrendamento
mercantil;
g)
Reconhecimento
ou confissão de dívidas;
h)
Outras
operações assemelhadas, inclusive com uso de derivativos financeiros.
A antecipação de receita é uma espécie do
gênero “operação de crédito”. É um empréstimo de curto prazo para atender a
insuficiência de caixa durante o exercício financeiro. Deve ser liquidada até o
final do próprio exercício financeiro, mais especificamente até o dia 10 de
dezembro.
A Operação de Crédito por Antecipação de
Receita (ARO) é regulada pela LRF, em seu art. 38, que é a Subseção III, da
Seção IV, que é destinada às operações de crédito.
No art. 38 são estabelecidos diversos
requisitos, além daqueles já exigidos para a realização de qualquer outra operação
de crédito contido nos outros artigos da mesma Seção IV. Não comentaremos os
requisitos, mas se pode destacar que entre essas exigências está a de que a
abertura de crédito será feita junto à instituição financeira “vencedora em
processo competitivo eletrônico promovido pelo Banco Central do Brasil” (art.
38, § 2º, LRF). Portanto, o Município tomador não poderá eleger a instituição a
que pretende realizar o empréstimo, mas estará vinculado ao resultado do
processo competitivo promovido pelo BC por meios eletrônicos.
A vedação de operações
entre entes da Federação. A LRF veda a realização de operação de crédito entre entes da
Federação. Foi uma medida positiva da LRF para evitar a promiscuidade no
passado recente do Brasil onde se financiou e refinanciou irresponsavelmente
dívidas de Municípios e Estados e dos respectivos entes a eles vinculados.
Entretanto, essa vedação não alcança a hipótese
proposta para estas reflexões (empréstimo do Município junto à instituição
financeira estatal de outro ente Federado).
É preciso notar que o art. 35 da LRF proíbe a
realização de operação de crédito entre dois entes da Federação diretamente ou
por meio de alguns de seus entes da
Administração indireta. Portanto não é toda empresa de um ente Federado que é
alcançada pela vedação.
O referido dispositivo diz expressamente: “É
vedada a realização de operação de crédito entre um ente da Federação,
diretamente ou por intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa
estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração
indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação da
dívida contraída anteriormente”. (grifo meu).
Uma estatal dotada de personalidade jurídica de
direito privado de um ente da Federação que não for considerada uma “dependente”
poderá realizar operação de crédito com outro ente da Federação. Esclarece-se
que empresa estatal dependente é aquela que recebe do ente controlador recursos
financeiros destinados à folha de pagamento, ao custeio em geral ou mesmo às
despesas de capital, tal como reza o art. 2º, III, da LRF.
A questão proposta neste artigo se refere à
instituição financeira estatal. Tais instituições são pessoas jurídicas do
Estado portadoras de personalidade jurídica de direito privado em razão de
explorarem atividade econômica típica do setor privado. São criadas e regidas
ao abrigo do art. 173 da Constituição da República. São, em regra,
autossuficientes. Por isso, não dependem do orçamento do ente controlador.
A permissão
excepcional para a operação de crédito é condicionada. Essa interpretação de que a
vedação do art. 35 não alcança às instituições financeiras estatais é
reafirmada pelo § 1º do mesmo art. 35, o qual estabelece que “as operações
entre instituição financeira estatal e outro ente da Federação (...)“
constituem uma exceção à regra do caput.
No entanto, o mencionado § 1º ao mesmo tempo em
que reafirma a exceção impõe condições para que essa operação possa concretizar-se.
Em verdade, estabelece vedações, que se juntam àquelas previstas no artigo 31,
§ 1º, I e nos artigos 34 a 37 da LRF que se referem às operações de crédito em
geral.
O § 1º do art. 35 da LRF estabelece que não
poderá ser realizada operação de crédito entre ente da Federação e instituição
financeira estatal pertencente a outro ente da Federação se tal operação
destinar-se a: “I – financiar, direta ou
indiretamente despesas correntes” e/ou “II – refinanciar dívidas não contraídas
junto à própria instituição concedente”.
São restrições relevantes. Com relação ao
inciso II, fica claro que os refinanciamentos são admitidos somente para
aqueles empréstimos contraídos com a própria instituição financeira. Não é o
caso da pergunta proposta.
Com referência ao inciso I, o empréstimo não
poderá ser feito para pagar, mesmo que indiretamente, despesas correntes. Qual
o alcance desta restrição? O que significa pagar “direta” ou “indiretamente”
despesas correntes? Creio que a doutrina ainda não tenha se debruçado sobre o
tema.
Para entender a dimensão do problema basta constatar
que as despesas correntes são aquelas que não geram aumento de patrimônio
público, mas concorrem para mantê-lo e para prestar os serviços públicos. Essas
despesas alcançam todas as Despesas de Custeio e também as chamadas Transferências
Correntes. São, na verdade, todas as despesas necessárias para a manutenção da
máquina pública e seus serviços. Trata-se de uma gama enorme de despesas:
despesas de pessoal, material de consumo, serviços de terceiros, encargos
diversos, subvenções sociais e econômicas, inativos, pensionistas, juros da
dívida pública, contribuições de previdência social, entre outras.
Ora, qualquer insuficiência de caixa – que é o
motivo que dá fundamento à operação por antecipação de receita – significa
falta de recursos financeiros para pagar as contas que são, muitas delas,
despesas correntes.
É controverso sustentar que a restrição
mencionada no inciso I do § 1º do art. 35 não seja aplicável às operações por
antecipação de receita, mas somente às demais operações de crédito. Poder-se-ia
sustentar também que a finalidade de suprimento da insuficiência de caixa –
motivo autorizador da ARO – é distinta da de pagar despesas correntes.
Mas essa tese é de difícil sustentação pelas
seguintes razões:
I - A proibição faz menção a suportar direta ou
indiretamente as despesas correntes. Assim, se a operação de crédito se destina
diretamente a suprir a deficiência de caixa, indiretamente acabaria por suportar despesas,
podendo ser, inclusive, as correntes.
II - A interpretação sistemática nos aponta
para a aplicação inevitável do art. 35 ao caso. A Subseção III
(art. 38) da LRF, onde se encontra disciplinada a ARO, está dentro da Seção IV
que trata das Operações de Crédito em geral. O art. 35 que fixa as limitações comentadas
está na Subseção II, também dentro da dita Seção IV.
Ademais, o artigo 38 é expresso quando pretende
fazer exceção com relação à aplicação de outras regras, como é o caso do
parágrafo primeiro que declara que as ARO não serão computadas para efeito de
verificar se houve a superação ou não do montante das despesas de capital, que
é uma limitação de caráter constitucional (art. 167, III, CF). Não há outras exceções
previstas pelo art. 38.
Considerações
conclusivas. Diante
do exposto, respondo de maneira afirmativa a pergunta proposta. Ademais, creio que os recursos resultantes da Operação de Crédito por
Antecipação de Receita (ARO) contraídas junto à instituição financeira estatal
de outro ente Federado não poderão suportar o pagamento de despesas correntes,
mas somente de despesas de capital.
Em outras palavras, os recursos obtidos por
meio de empréstimo destinado a suprir a insuficiência de caixa e antecipar
receitas não poderão destinar-se ao pagamento de despesas como despesas de pessoal,
material de consumo, serviços de terceiros, encargos diversos, subvenções
sociais e econômicas, inativos, pensionistas, juros da dívida pública, contribuições
de previdência social, entre outras.
Por outro lado, os recursos obtidos por tal operação
de crédito poderão cobrir o pagamento de despesas com obras públicas, serviços
de regime de programação especial, equipamentos e instalações, material
permanente, aquisições de imóveis e títulos representativos de capital de empresas
em funcionamento, entre outras despesas da espécie.
Corrigido às 20h21min.
Corrigido às 20h21min.