quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Uma análise criteriosa da ADI 484/PR, por Herbert Almeida

Publico a análise de Herbert Almeida, que gentilmente me foi enviada, sobre o tema que envolve a ADI 484/PR, que foi discutida nas postagens anteriores. 

Trata-se de uma análise lúcida e criteriosa que muito contribuirá. Herbert fez uma investigação que chegou às próprias fontes do Voto da Ministra Carmen Lúcia. 

"Boa noite, professor!

Como você vem realizando diversos apontamentos acerca da situação dos procuradores autárquicos nos Estados, muito pertinentes por sinal, mas levando em conta que sempre somos questionados sobre o alcance do voto vencido da Ministra Cármen Lúcia na ADI 484/PR, gostaria de ressaltar alguns pontos que poderiam ser também trabalhados em suas matérias, caso entenda conveniente:
1-     A Pendência do julgamento definitivo da ADI 484/pr:
A ADI 484/PR ainda não transitou em julgado. Encontra-se pendente de julgamento embargos de declaração (da Assembleia Legislativa, salvo equívoco) que destacam algumas inconsistências com o julgamento levado a efeito na ADI 175/PR (esta sim transitada em julgado). Não acredito que haverá o conhecimento do recurso na ADI 484/PR, o que não legitima que seja ela citada sistematicamente como fato consumado ou como posicionamento dominante do STF.
Além disso, dentre os votos proferidos na ADI 175/PR imposta destacar parte da fundamentação desenvolvida no Voto Vista do Eminente Senhor Ministro Neri da Silveira (pags. 42 a 48). Negrito e sublinho no texto original (abaixo transcrito) a parte que mais interessa aos autárquicos e fundacionais, principalmente naqueles Estados onde as Constituições já trataram das atribuições de assessoria, consultoria e representação jurídicas (das entidades personificadas) apartadas da PGE:
“Tenho, assim, que, só quanto ao último (o Executivo), poderá assumir algum relevo a controvérsia sobre ser indissociável, da Procuradoria do Estado, a tarefa de assessoramento, entregue pela Constituição do Paraná, a uma carreira especial, sob a coordenação da Procuradoria-Geral do Estado.
(…)
Nem assim, entendo, porém, que, do citado dispositivo (o art. 132), se possa extrair malha tão estreita, a subjugar as Constituições estaduais, a ponto de impedir a existência (a par das dos Procuradores) de carreiras especiais, voltadas ao assessoramento jurídico, mas sob a coordenação da Procuradoria-Geral do Estado de modo a assegurar a uniformidade de jurisprudência administrativa, onde julgo residir escopo de norma da Carta Federal. Não em alguma reivindicação de caráter corporativo.
(…)
Cuida-se ademais, de situações peculiares aos serviços de consultoria, assessoramento jurídico e representação, judicial e extrajudicial, de autarquias e fundações, do âmbito estadual, sobre as quais cumpre entender, há de estar reservado, ao Estado-membro dispor, na sua auto-organização, ao ensejo em que se implanta uma nova ordem constitucional.
2-     O Fundamento do voto vencido da Ministra Cármen Lúcia, baseado em grande parte no trabalho monográfico de Marco Túlio Carvalho Rocha, Procurador do Estado de Minas Gerais, intitulado “A Unicidade Orgânica da Representação Judicial e da Consultoria Jurídica do Estado de Minas Gerais” (in Revista de Direito Administrativo, nº 223; jan./mar. 2001, Rio de Janeiro), adotou viés interpretativo diverso do que concluiu o estudo citado.
Transcrevo parte do trabalho do autor omitida no voto apresentado na ADI 484/PR pela Ministra:
As 'procuraturas constitucionais' são os órgãos cujos estatutos básicos encontram-se disciplinados nos arts. 127, 129, 131, 132, 133 e 134 da Constituição da República, voltadas cada uma delas a conjuntos de interesses característicos.
O primeiro conjunto de interesses envolve o que o autor denomina de 'advocacia da sociedade', estando a cargo do Ministério Público. O segundo conjunto é o dos interesses públicos estabelecidos em lei e cometidos ao Estado em seus desdobramentos políticos (União, Estados e Distrito Federal); a função correspondente a esse conjunto é a 'Advocacia de Estado' e as procuraturas que as tem a seu cargo são a Advocacia-Geral da União (art. 131, Const. da Rep.) e as Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal (art. 132, Const. da Rep.). O terceiro conjunto de interesses é caracterizado pela insuficiência de recursos daqueles que devam ou queiram defendê-los: são os interesses dos necessitados, e a 'procuratura' que lhe corresponde é a Defensoria Pública (art. 134, Const. da Rep.).
Por fim, ressalta MOREIRA NETO, às três procuraturas constitucionais compete 'a função de controle institucional de provedoria, sendo, portanto, públicas não só quanto à finalidade mas também quanto aos agentes, pois são exercidas por agentes públicos (...)'4 .
Outra característica comum às ‘procuraturas constitucionais’ é a essencialidade de suas funções: são órgãos de Estado, isto é, não são meros órgãos administrativos de caráter contingente. Sua existência advém do quadro institucional adotado pela Constituição da República de 1988, sendo, por isso, de existência necessária.
Não se pode olvidar que a Constituição da República não esgota o quadro da advocacia pública e, notadamente, das procuradorias públicas, incluindo-se indubitavelmente nesses conceitos as procuradorias dos municípios (típica Advocacia de Estado), e as procuradorias das pessoas jurídicas de direito público, de autarquias, empresas públicas, etc.
(…)
Assim temos que os entes dotados de personalidade jurídica possuem ordinariamente interesses imediatos distintos de seus interesses públicos finalísticos. Têm, por isso, interesse misto. Para cuidar dos assuntos que não coincidem com os interesses do ente político aos quais são afetos[1], esses entes devem possuir cada qual seu corpo jurídico próprio”. [a remissão não consta no original]
(...)
“Vale relembrar que não são da competência das Procuradorias de Estado os assuntos que se referem ao Estado-ordem jurídica (em oposição ao Estado-pessoa jurídica). A defesa da ordem jurídica estatal compete ao Ministério Público, nos termos do art. 127 e ss. Da Constituição da República (cf. nº 1 supra).
(...)
No aspecto subjetivo tanto a representação judicial quanto a consultoria jurídica a que se refere o art. 132 da Constituição da República sofrem limitações: nos estritos termos do dispositivo constitucional, elas somente são devidas em proveito das respectivas unidades federadas. Ou seja: o Procurador do Estado somente pode intervir nos processos judiciais que versam sobre os interesses do Estado federado que representa, e somente para representá-lo. Também a consultoria dos Estados somente tem lugar em prol de seus interesses imediatos.
É da competência e atribuição exclusiva dos Procuradores dos Estados a representação judicial e a consultoria jurídica de todos os órgãos da administração direta uma vez que esses não possuem personalidade jurídica distinta: os atos por eles praticados são atos de Estado, diretamente, sem mediação.”
3-  A confusão sobre o alcance dos termos “Poder Executivo” e “Administração Pública” nos julgados pós 2012 (ADI 484 PR) feita em diversos acórdãos do STF que acabam dando sustentação à argumentação da ANAPE:
Neste ponto ressalto o “CAPÍTULO II, DO PODER EXECUTIVO, Seção I, DO PRESIDENTE E DO VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA” da CF que dispõe: “Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.” (que por simetria, no âmbito estadual, equivale ao Governador e seus Secretários).
O Poder Executivo do Estado-membro está inserido, portanto, nos termos da própria Constituição Federal, no conceito de Administração Pública Direta[2], do mesmo modo que estão os demais Poderes da República, assim como seus respectivos órgãos despersonificados.
O mesmo entendimento pode ser extraído do disposto no art. 49, inciso X, da CF, que, mais uma vez, aponta expressamente para a necessária distinção entre “Poder Executivo” e “Administração Indireta”.
Penso ser este o alcance semântico dado ao termo “Poder Executivo”, utilizado na ADI 881/ES e na maioria dos julgados que se seguiram:
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O Decreto-Lei 200/1967, em seu art. 5º, inciso I, define autarquia como o “Serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.”
Seriam estas as observações que entendo pertinentes e que extrai dos estudos que tenho feito sobre a situação vivida em Goiás, objeto inclusive de duas ADI's no STF de autoria da ANAPE, com conclusões distintas tanto da parte da AGU quanto da parte da PGR. A impressão que tenho é que tais órgãos não se aprofundaram no estudo da questão para emitirem seus últimos pareceres ou realmente compraram a tese defendida pela ANAPE da unicidade da representação dos órgãos e entes NAS (e não das como esta inscrito na CF) unidades federadas.

Abraço fraterno,

Herbert Oliveira Carrara de Almeida
Gestor Jurídico (atualmente licenciado)
Assessor Jurídico do Ministério Público Estadual"


[1] AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADIMPLEMENTO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO. TRÂNSITO EM JULGADO ANTERIOR À EDIÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR Nº 66/2009. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA GOIASPREV. I- A GOIASPREV, como entidade gestora única do Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos - RPPS - e do Regime Próprio de Previdência dos Militares do Estado de Goiás - RPPM, é responsável pelo pagamento de benefícios decorrentes dos aludidos regimes, ressalvados apenas os casos de débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários insatisfeitos, nos termos de expressa dicção legal (art. 25, §3º, LC 66/2009).  II- No caso, como a sentença objeto do feito executivo transitou em julgado em 23/09/2008, portanto, em momento anterior à edição da Lei Complementar nº 66/09, que criou a Goiasprev, urge reconhecer que a responsabilidade pelo pagamento da obrigação deve ficar a cargo do Estado de Goiás, nos termos da interpretação literal do art. 25, § 3º do referido diploma normativo, impondo por sua vez, a exclusão da  autarquia estadual do polo passivo da demanda.  AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO.
(TJGO, AGRAVO DE INSTRUMENTO 447806-57.2011.8.09.0000, Rel. DES. LUIZ EDUARDO DE SOUSA, 1A CAMARA CIVEL, julgado em 17/04/2012, DJe 1052 de 27/04/2012);
[2] - Neste Trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia, preferido nos autos do RE 602381, Tribunal Pleno, julgado em 20/11/2014, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-023 DIVULG 03-02-2015 PUBLIC 04-02-2015, fica clara a exata delimitação e alcance dos termos :
5. Observa-se do histórico legislativo relativo à Procuradoria-Geral Federal ter-se estruturado ela segundo o que posto em leis ordinárias, mesmo e principalmente no período posterior à Constituição de 1988. Tanto tem a sua razão de ser.
O art. 131 da Constituição da República não tratou da Procuradoria- Geral-Federal ou dos procuradores federais, ou seja, esse dispositivo constitucional não disciplinou a representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas (Administração Indireta), mas apenas da União (Administração Direta).
O art. 131 da Constituição tratou da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, no seu § 3º, conforme se observa na sua transcrição:
“Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. § 3º Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.”
Portanto, à representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais não se aplica o art. 131 da Constituição da República, pelo que a Lei Complementar n. 73/1993 (Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União) limitou-se a dispor, em seu art. 17, que os “órgãos jurídicos” das autarquias e das fundações públicos são vinculados à Advocacia Geral da União.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

A PEC 80 segue em debate.



Prosseguimos no debate. Transcrevo abaixo a nova manifestação do interlocutor anônimo e, em seguida, faço minhas considerações.
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Professor, os julgados apresentados pelo senhor foram anteriores ao julgamento da ADI 448/PR e não afastam as conclusões a que cheguei. E não, o sistema federal não vai ser julgado inconstitucional pois, como eu disse, as normas são diversas. Sei que o senhor as conhece, mas leia outra vez:

"Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, DIRETAMENTE OU ATRAVÉS DE ÓRGÃO VINCULADO, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo."

"Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas"

"Art. 69. Será permitido aos Estados manter consultorias jurídicas separadas de suas Procuradorias-Gerais ou Advocacias-Gerais, desde que, na data da promulgação da Constituição, tenham órgãos distintos para as respectivas funções."

Veja que as normas são notadamente DIVERSAS.

Além do mais, felizmente e para o bem dos serviços jurídicos dos Estados e do DF, não fui o único a ler o julgamento da ADI 448 e dos dispositivos supracitados da forma como expus no primeiro comentário.

Tanto a AGU, quanto o PGR confrotaram as normas constitucionais e expuseram com clareza a diferença entre os sistemas da União e dos Estados e DF.

Apenas para apontar uma questão de ordem prática, peço que pense sobre uma questão: para onde iriam os advogados dessas novas carreiras após uma reforma administrativa que decidisse pela centralização dos serviços públicos, decidindo pela extinção das entidades da Administração Indireta? Seriam postos em disponibilidade? Continuariam recebendo sem trabalho a par da escassez de recursos anunciada aos quatro cantos?

Sem dispensar sua resposta, já ajudo. O constituinte originário não fez norma para ser aplicada em outro país, pelo contrário. Fez conhecedor das realidades adminsitrativas e política dos Estados que, o senhor há de convir, são bem diferentes da realidade da União. Daí, entre outros e variados motivos tão importantes ou mais, a necessidade de previsão de órgão único.

Por fim, agradeço pela deferência, e desde já peço desculpa aos possíveis beneficiários da PEC, mas a Administração tem que pautar-se pelo interesse público e não por interesse de um público que fez um concurso simplificado e com grau de remuneração muito inferior, em ingressar numa carreira sem ter observado os requisitos constitucionais para tanto
”.

Caro interlocutor anônimo,
A ADI 484/PR é, de fato, posterior à ADI 175. Em momento algum tentei dizer algo diverso.
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Mas é oportuno destacar que a manifestação do STF na ADI 484, citada pelo colega, não se configura como uma alteração da posição adotada na ADI 175. E nem poderia fazê-lo pela evidente razão de que ambas as ações se reportam a análises do art. 132 para finalidades distintas entre si e debaixo de contextos também distintos, como já havíamos destacado.
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De qualquer forma, há outras manifestações na jurisprudência que convergem para a tese que defendemos, como fizemos menção em outro momento.
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Por isso, insisto no perigo do decisionismo jurídico anticientífico que pretende extrair conclusões gerais de textos particulares veiculados em contextos diferentes um do outro. Assim, reafirmamos que o tema da representação judicial das Administrações Indiretas dos Estados ainda não foi tratado em sua integralidade pelo STF.
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Para reafirmar que o tratamento constitucional das advocacias públicas da União e do Estado é totalmente distinta, o colega anônimo ampara-se, uma vez mais, na interpretação literal dos artigos art. 131 e art. 132 da Constituição Federal.
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A interpretação literal é extremamente limitada para ser capaz de definir diferenças deste porte. Há a diferença de texto, não necessariamente de norma. Não se pode perder de vista que o texto não se confunde com a norma.
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Mas, ainda assim, ao aplicar a interpretação literal ao texto integral do art. 131 – e não só a parte que o interlocutor colocou em caixa alta – verifica-se que a representação judicial e extrajudicial feita pela AGU, e seus órgãos vinculados ou não, é da “União”. A figura jurídica da representação destina-se à pessoa jurídica. Ora, literalmente, a União é uma pessoa jurídica que não se confunde com as pessoas da Administração Indireta. Ao se cumprir a interpretação literal resultaria na imposição de que a União abrigasse órgãos jurídicos dotados de autonomia dentro da própria Administração Direta (o que, aliás, era uma situação conhecida na esfera federal antes da organização da AGU).
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O fato é que tal interpretação não seria razoável, se apreciada na perspectiva sistemática da Carta da República. O princípio da descentralização impõe algumas condições, como já comentamos em outra oportunidade.
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Por isso, acertadamente, a LC 73/93 tratou de mencionar que as autarquias e fundações federais seriam representadas pelos seus órgãos próprios (art. 17). Com isso, afastou eventuais dúvidas decorrentes da literalidade da Constituição.
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De outro lado, a expressão “unidades federadas” contida no art. 132 não pode reportar-se às pessoas jurídicas vinculadas à pessoa jurídica que responde pela própria Unidade Federada. As pessoas vinculadas da Administração Indireta não representam a Unidade Federada e não podem falar em nome dela em juízo ou fora dele. As pessoas jurídicas da Administração Indireta são apenas criadas pelo ente federado e a ele se vinculam. O criador não se confunde com a criatura.
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Ademais, o Constituinte não usou a expressão “unidades federadas” contida art. 132 em nenhum outro lugar para fazer crer que a sua interpretação literal representa o conjunto de todas as pessoas jurídicas de direito público instituídas dentro do Estado. Muito ao contrário, quando se pretende alcançar a Administração Indireta, a Constituição fez menção expressa a elas em diversos pontos.
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Por tudo isso, nem mesmo literalmente tenho condições de me alinhar ao interlocutor anônimo.
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Mas independente do raciocínio exposto, podemos fazer, a seguir, um exercício de imaginação.
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Partamos, então, da premissa de que o tratamento Constitucional do Estado e da União é distinto, tal qual defende o colega anônimo.
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Pois bem. Inspirando-se no exitoso sistema de advocacia pública federal, o Constituinte derivado resolve “alterar” o sistema estadual na Constituição. Qual seria o impedimento para tanto? Violaria a autonomia administrativa estadual? Por que razão? O Constituinte deu este tratamento para a União sem configurar violação alguma. E relembre-se que o constituinte – mesmo o derivado – não se confunde com o legislador federal que exerce a autonomia legislativa da União. Se houve tratamento assim para a União, poderá ser o mesmo feito para o Estado, por simetria.
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Também por essas razões, respeitosamente, não podemos comungar do mesmo entendimento do anônimo.
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O interlocutor também propõe uma questão de ordem prática. Pergunta se, com a “criação da nova carreira”, como ficaria se a administração indireta, a qual pertencesse agentes dessa carreira, viesse a ser extinta?
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Inicialmente, há que se reconhecer que não são todos os dias que vemos a extinção de autarquias e fundações. Trata-se de uma excepcionalidade. Mas se o interlocutor crê que a exceção deve condicionar a regra. Embarquemos no seu exercício imaginativo.
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Comecemos por advertir que não se trata propriamente de “novas carreiras”. Os advogados públicos já existem na Administração Indireta. Apenas passariam, na prática, a exercer a representação judicial das respectivas entidades.
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A resposta à indagação formulada pelo anônimo vem prevista pela própria Constituição. Com a extinção da entidade (e consequente extinção do cargo), o servidor ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional, até o seu aproveitamento em outro cargo (art. 41, § 3º). Em outras palavras, o advogado público terá o mesmo destino dos demais servidores do ente extinto. Neste ponto, não creio ser possível sustentar que a escassez de recursos tenha força para extinguir ou restringir o direito à disponibilidade de estatura constitucional.
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É bom lembrar que a PEC 80 não faz a unificação da carreira de procuradores de Estado com a dos procuradores autárquicos e fundacionais. Esse tema poderá até ser tratado no âmbito de cada Estado, tal como a LC 73/93 fez com a AGU no âmbito da União. Havendo um tratamento Estadual que unifique, a resposta poderá ser outra. Mas é importante considerar que a PEC 80 não tem esse alcance.
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No penúltimo parágrafo, o interlocutor anônimo aduz que o Constituinte originário deu tratamento diferente entre a União e os Estados por entender que são realidades distintas. E, por isso, previu a necessidade de um órgão jurídico de único para os Estados.
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É verdade que há diferenças importantes entre a União e os Estados. É um argumento sociológico que procede. No entanto, se observado os contornos do ponto de vista jurídico, a questão se altera. A Administração Pública em todos os entes federados é estruturada da mesma forma jurídica. As Administrações Públicas Indiretas são vinculadas e não subordinadas às Diretas em todos eles.
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As pessoas jurídicas que compõem a Administração Indireta se traduzem em ponto de imputação de direitos e obrigações distintos da Administração Direta. Por isso, a descentralização impõe um regime jurídico que exige a conservação da autonomia. Aliás, vários diplomas normativos reconhecem inclusive a possibilidade de conflitos entre tais pessoas. Cito o recente exemplo da Lei de Mediação (Lei 13.140/2015. Art. 32. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão criar câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, onde houver, com competência para: I - dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública;).
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O interlocutor termina sua manifestação agradecendo a deferência e declarando o seguinte: “desde já peço desculpa aos possíveis beneficiários da PEC, mas a Administração tem que pautar-se pelo interesse público e não por interesse de um público que fez um concurso simplificado e com grau de remuneração muito inferior, em ingressar numa carreira sem ter observado os requisitos constitucionais para tanto”.
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Perdoe-me, mas afirmar que a PEC 80 “não pauta pelo interesse público” é um tipo de argumento que nada diz. A verdade é que não passa de mera fraseologia, como dizia o administrativista argentino Rafael Bielsa, na media em que não se concretiza com referência aos motivos reais.
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Do mesmo modo, afirmar que a PEC, em vez do interesse público, pauta pelo interesse de um público que “fez um concurso simplificado e com grau muito inferior de remuneração” tampouco me parece convincente, pois a PEC não aumenta vencimentos, não cria cargos novos e muito menos promove a equiparação dos advogados públicos aos procuradores para efeitos remuneratórios.
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É importante destacar também que os destinatários da PEC em questão não fizeram “concurso simplificado” porque não existe esta modalidade de certame público para acesso aos cargos públicos. Há o “concurso público”. Ao que temos notícia, todos os advogados públicos das autarquias e fundações, após a Constituição vigente, foram submetidos aos concursos de provas ou provas e títulos. Portanto, creio que se mostra inverídica a manifestação do colega.
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No entanto, se (e tão-somente se) a menção a “concurso simplificado” teve a finalidade depreciativa ou de menosprezo, é de se lamentar. O argumento escaparia da área jurídica e, assim, fugiria do escopo da discussão. A resposta mais recomendada para os casos da espécie é mesmo o silêncio.
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Nessa perspectiva, confesso que sofro a tentação de discutir sobre os concursos públicos, sobre o que significa, de fato, “concursos mais exigentes” ou “menos exigentes”, sobre a presunção do saber jurídico, sobre o que significa realmente o conhecimento jurídico e também como se manifesta, na realidade, o preparo profissional para eficiente defesa do Estado.
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Mas não cederei à tentação por ser impertinente à juridicidade do caso, e que apenas pode contribuir para mais desagregação. É vital não perdermos o foco da discussão democrática, cordial e que busque os melhores caminhos para a advocacia pública como um todo, inclusive para as próprias Procuradorias Gerais.
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Por fim, quanto à frase final do interlocutor, ela não pode ser aceita. Acusa os advogados públicos da Administração Indireta de terem feito concurso cientes de que estavam descumprindo à Constituição (por ser, supostamente, único o órgão jurídico Estadual). A acusação é infeliz, pois os que interpretam a tese da unicidade de representação judicial pelas PGEs não são os donos da verdade absoluta. Não há unanimidade nem mesmo entre as Procuradorias Gerais de Estado e seus procuradores.
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Cito o exemplo do Estado do Rio de Janeiro e sua Procuradoria Geral do Estado - PGE, instituição nacionalmente conhecida inclusive pelos excelentes quadros que gera, como o Ilustre Ministro Luiz Roberto Barroso. A Lei Orgânica da PGE/RJ (LC 15/80 com suas diversas atualizações) garante, com clareza e objetividade, que a PGE não representa as pessoas jurídica da Administração Indireta e somente poderia fazê-lo por meio de convênio. Estabelece, inclusive, acréscimo remuneratório para os procuradores que, por intermédio do convênio, exercem tal atribuição na Administração Indireta:
Art. 2º (...)
(...)
§ 3º - Mediante convênios ou contratos, a critério do Procurador-Geral do Estado, poderá a Procuradoria Geral do Estado prestar consultoria jurídica e encarregar-se de atos e providências judiciais do interesse dos Municípios do Estado do Rio de Janeiro, podendo, também, por ato próprio do Procurador-Geral do Estado ou por determinação do Governador do Estado, em cada caso, prestar tais serviços a entidades da Administração Indireta do Estado ou fundações por ele criadas ou mantidas, assegurados, em conseqüência, o reembolso de eventuais despesas, acréscimos remuneratórios ou prêmios por produtividade aos Procuradores que exerçam funções no âmbito da Procuradoria Geral do Estado ou em cargo pertencente ao sistema jurídico do Estado do Rio de Janeiro. (Nova redação dada pela Lei Complementar nº 111/2006)
§ 4º - Os acréscimos remuneratórios ou prêmios de produtividade, de que trata o §3º deste artigo, corresponderão a valor equivalente ao percentual de 1%(um por cento) a 5% (cinco por cento) do valor total da remuneração de Procurador do Estado de terceira categoria, a ser fixado por ato exclusivo do Procurador-Geral do Estado, caso a caso, avaliados a complexidade e o volume das ações judiciais. (Acrescentado pela Lei Complementar nº 111/2006).
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Frente a todo o exposto, se pode constatar que o debate, nestas condições e circunstâncias, já não tem muito o que avançar com o interlocutor anônimo. Fico por aqui.