domingo, 17 de agosto de 2014

Repensando Hans Kelsen. Um proposta (re)conciliadora


As razões e objetivos destas reflexões. Gostaria de fazer breves comentários sobre algumas conhecidas críticas contra a Teoria Pura do Direito (TPD). Pretendemos pontuar acerca de alguns aspectos dessas críticas porque cremos que revelam equívocos que acabam por induzir a um rechaço indevido de sua teoria.

A proposta não é fazer uma defesa do positivismo jurídico ou a reivindicação de alguma espécie de neopositivismo. Também não buscamos fazer uma análise profunda de sua obra. Muitos autores de envergadura já o fizeram.

Os comentários – que se pretendem concisos e tópicos – são apenas para estimular a reflexão de forma a que se possa ver a teoria de Kelsen por outro aspecto. Tratam-se, enfim, de reflexões que buscam uma verdadeira conciliação – ou reconciliação – com a teoria kelseniana. Dessa maneira, esperamos colaborar para que suas ideias possam, ainda hoje, ser úteis e inspiradoras para os juristas e operadores do Direito de todas as vertentes.

Críticas a Kelsen e a sua Teoria Pura do Direito. Desde o final do século passado, a crítica à doutrina de Kelsen no âmbito jurídico sempre foi severa e persistente. Algumas delas foram repetidas tantas vezes que se converteram em afirmações inquestionáveis. Quem nunca ouviu dizer que Kelsen reduziu o Direito à norma e que tentou purificar o Direito sacrificando o seu conteúdo moral? Com isso – diziam os críticos – o seu positivismo optou pela segurança em detrimento da justiça; optou pela aplicação fria da lei, pela subsunção mecânica, em que o juiz exerce uma função passiva. Por essa razão, Kelsen chegou a ser conhecido como legalista, formalista e positivista. Não era difícil constatar que, algumas vezes, ser chamado de kelseniano equivalia a um rótulo até pejorativo e discriminatório.

Não se pode esquecer também que os adversários de Kelsen chegaram ao plano pessoal quando o acusaram de nazista, sob a alegação de que sua concepção de Direito conduzia ao cumprimento da norma escrita positivada em qualquer circunstância, tal como se fez no Reich. Enfim, a conclusão geral sempre foi a de que a teoria jurídica de Kelsen, além de fria e insensível às injustiças, estava superada.

Kelsen queria mesmo purificar o Direito? Na verdade, Kelsen não quis purificar o Direito. A sua obra principal não se intitulava “teoria do Direito puro”, mas “teoria pura do Direito”. A pureza é da teoria e não do Direito. Esse erro costuma acontecer quando se reduz a TPD ao tópico número 1 do primeiro capítulo da obra, o qual trata de definir o que é a “pureza”.

A verdade é que Kelsen, integrante da chamada Escola de Viena, estava incomodado com o momento anticientífico por que passava o Direito no começo do século passado, em que se buscava interpretar as normas valendo-se da história, sociologia, política ou até da psicologia. Kelsen entendia, por exemplo, que era um desvario recorrer à psicologia para decifrar a intenção das partes em um contrato. Para contrapor-se a esse sincretismo, ele propôs um método próprio para o Direito. Por isso, o que ele queria purificar era o Direito enquanto ciência, enquanto teoria e não o Direito em sentido ontológico. Buscava, em última análise, um método jurídico-científico e não um novo conceito de Direito.

Esse é um primeiro indício de que há certa dose de imprudência ao se afirmar que Kelsen reduziu o Direito à norma.

O Direito é impermeável à moral, segundo o positivismo de Kelsen? A resposta comum dos críticos de Kelsen é afirmativa. No entanto, acreditamos que esse é outro mito acerca da teoria kelseniana. A TPD não veda a incorporação de exigências morais ao Direito. O fundamento está na teoria da indeterminação jurídica de Kelsen. Vejamos como isso acontece.

O último capítulo da obra “Teoria Pura do Direito” é o esboço de sua teoria da interpretação. Nele, Kelsen admite a existência de mais de uma interpretação possível para uma norma jurídica. Para ele, não existe uma única possível, logo não existe uma única resposta correta admitida pelo Direito.

Para melhor explicar a questão, ele utilizou a metáfora do quadro que é delimitado pela moldura. A norma jurídica é a moldura que admite variados conteúdos para o quadro que amolda. O que não pode o intérprete é ir além da moldura, ou seja, além da norma. Portanto o ato de interpretar apresenta inegável indeterminação, segundo Kelsen.

É certo que a sua teoria da indeterminação apresenta limitações e, como observa Timothy Endicott, fracassou em seu propósito principal (Vagueness in Law, Oxford, Oxford University Press, pp. 60-63). Uma dessas limitações é que a construção da moldura (da norma) pode ser tão indeterminada quanto o preenchimento do seu conteúdo, pois a textura aberta da linguagem da norma (em verdade, de sua fonte) assim o impõe. Kelsen não se debruçou detidamente sobre o tema, mas reconheceu que se pode ter uma indeterminação com origem na linguagem. Admitiu expressamente que “o sentido verbal da norma não é unívoco”, quando comentou sobre a indeterminação não intencional do ato de aplicação do Direito (Teoria Pura do Direito, trad. João B. Machado, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 389). No entanto, nossa proposta não é aprofundar na identificação das deficiências, mas apenas mostrar que sua teoria – não obstante sua limitação – não está impermeável às exigências morais vigentes na sociedade.

Pois bem, é dentro do espectro desta indeterminação que a TPD admite que o intérprete agregue elementos que podemos dizer “extranormativos”. Kelsen entende o momento de escolher a hipótese mais correta para a composição do conteúdo da “moldura normativa” como de “criação” do Direito. Segundo ele, há a necessidade de escolher uma – dentre as hipóteses possíveis de interpretação da norma – que se tornará o “Direito positivo” a ser concretizado (a norma individual). Essa escolha é regida por normas que não são as positivas, segundo Kelsen, mas sim as “normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc”. (Teoria Púra do Direito, trad. João B. Machado, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 393).

Miguel Reale entendia que o Direito era formado por fato, valor e norma. Analisando com acuidade Kelsen, Reale demonstrou que a TPD já continha uma tricotomia implícita (Filosofia do Direito, São Paulo, Saraiva, 1987, p. 473). Portanto, não há como negar que, para Kelsen, a aplicação do Direito envolve o juízo de moralidade, de justeza, de valores sociais vigentes.

A Teoria Pura do Direito e as teorias jurídicas contemporâneas. É dentro da teoria da indeterminação que a doutrina de Kelsen pode se aproximar das evoluídas doutrinas contemporâneas do Direito e não negá-las. Estas novas teorias tentam incluir na ciência jurídica o momento da escolha da melhor hipótese interpretativa que, reafirme-se, Kelsen não ignorou, mas que preferiu deixar fora da “ciência jurídica”, para acomodá-la (a escolha) no âmbito da “política do Direito”. Por exemplo, se observarmos a “right tesis” de Ronald Dworkin ou a “ponderação” de Robert Alexy, se pode ver que ambos desenvolvem teorias para a aplicação científica das normas levando em consideração também valores como a moral e a justiça.

De outro lado, os pós-positivistas de qualquer matiz e até mesmo os jusnaturalistas reconhecem o valor do Direito positivo e da necessidade de sua aplicação tal qual posto, pelo menos nos chamados “easy cases”. Trata-se de um fato inquestionável.

O positivismo de Kelsen é formalista, frio e mecanicista? Se ser formalista, frio e mecanicista na aplicação da lei significa a estar preso à literalidade sem deixar margem de opções ao intérprete, a teoria kelseniana em nada se aproxima dessas características. O que a TPD permite é exatamente o oposto: muitas opções. Aliás, a doutrina de Kelsen veio, inclusive, contrapor-se ao positivismo legalista então vigente, como bem anotou Roberto Ago (Scienza Giuridica e Diritto Internazionale, Milano, Giuffrè Editore, 1950, p. 31).

Recordemos que a sua teoria da indeterminação admite mais de uma interpretação jurídica como correta, desde que todas elas se mantenham dentro do campo da “moldura normativa”. Considerando essa lógica, o que se constata é que a aplicação da norma no estilo kelseniano é por demais maleável. A frieza passa longe. É exatamente aqui que está, por um lado, a genialidade do austríaco e, por outro, a fragilidade de sua teoria.

A crítica da fragilidade da teoria de Kelsen pode ser formulada exatamente no sentido contrário ao que comumente se faz. O positivismo kelseniano aceitaria, de certa forma, muitas possibilidades e, por isso, muita flexibilidade para a operação do Direito. Aliás, é expressamente dito por Kelsen que há, neste particular, a discricionariedade judicial para referir-se à liberdade do juiz. Se cotejarmos esse ponto de sua doutrina com a que admite a indeterminação decorrente da linguagem, se pode constatar que a proposta kelseniana não faz do juiz um aplicador passivo, mas altamente ativo, na medida em que lhe incumbe escolher uma hipótese que seja a mais adequada à moral, à justiça, ao bem comum etc., entre todas as possíveis.

A genialidade de Kelsen deve ser reconhecida também porque ele estava plenamente consciente da limitação que deveria estipular à sua teoria para ter condições de chamá-la de “ciência jurídica”, nos moldes do positivismo então vigente. A ciência jurídica, para Kelsen, termina com a fixação da moldura normativa. Até este ponto ele tinha condições de garantir certo grau de certeza, apesar de ter reconhecido que os sentidos das palavras de uma norma não são unívocos. A partir de tal ponto, a liberdade de escolha da melhor interpretação entre as possíveis passaria a ser objeto da “política do Direito”. De toda forma, é fundamental destacar que essa parte da liberdade de escolha comporia o processo de concretização do Direito juntamente com a parte que reservou à ciência.

Assim, a qualificação da TPD de fria e mecânica não nos parece muito apropriada.

Considerações conclusivas. É evidente que a TPD não é uma doutrina imune às críticas. Contudo, a evolução da tecnologia e da filosofia do Direito não pode ser vista como uma negação à sua teoria. Assim como a física quântica significou um avanço no plano das ciências, isso não pode significar a inutilidade da física de Newton. A física quântica relativizou o espaço e o tempo, mas estes, considerados na teoria newtoniana, continuam sendo úteis para uma infinidade de nossas atividades práticas: estabelecer a duração de viagens, a medição de espaços, a construção de edifícios, a evolução da aeronáutica, entre tantas outras utilidades. Por isso, a nova ciência não significa a negação da clássica.

Kelsen continua sendo fonte de inspiração para minhas reflexões jurídicas. Não é raro hoje, na jurisprudência brasileira, a constatação de excessos na aplicação de princípios com a incauta desconsideração do Direito positivo. Faço referência a um panprincipiologismo patológico que encontra incentivo em objetivos muitas vezes pouco nobres e também na preguiça para se conhecer as normas vigentes. 

Faço referência também àquela busca pela “justiça” por meio de um subjetivismo autoritário. Assistimos uma demonstração clara na recente história da Justiça brasileira em que um magistrado revelou, publicamente, que majorou a pena do réu com a finalidade específica de evitar a prescrição de um crime a ele imputado (ato não permitido pelo Direito Positivo), para que, segundo ele, se fizesse justiça. Em tempos como esses, Kelsen continua a me inspirar. A compreensão e a valorização do Direito positivo como uma expressão republicana continua sendo um fabuloso ponto de referência. 

Do mesmo modo, a busca pela segurança jurídica como um recurso fundamental à legitimação do Estado de Direito é outra referência kelseniana preciosa. Em tempos em que, por exemplo, o direito adquirido ganha flexibilidade duvidosa na medida em que desprestigia a estabilidade das relações jurídicas, Kelsen é uma reflexão obrigatória. 

Por tudo isso, pode-se estar contra Kelsen em diversos aspectos ou mesmo a favor, mas nunca sem Kelsen.