domingo, 15 de maio de 2016

Onde está o dolo? Por Grevi Netto


Inicialmente, necessário se faz uma breve contextualização sobre alguns aspectos.
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O primeiro deles é que num dos atos imputados à Presidente da República como caracterizadores de crime de responsabilidade, realizados em julho e agosto de 2015 (Decretos que abriram créditos adicionais suplementares), só passaram a ser considerados ilegais pelo Tribunal competente em outubro de 2015. No momento da emissão de tais atos, estes eram considerados corretos.
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Em segundo lugar, apesar do impeachment ser um processo que apresenta aspectos políticos e estar previsto pela Constituição, não pode, de forma alguma, se sobrepor à lei. Há um requisito jurídico para que se efetive o impeachment que não pode ser desconsiderado: o cometimento de crime de responsabilidade.
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É muito difícil negar a característica penal do processo do impeachment. O fato de estar previsto na Constituição não nega que a realização de determinadas condutas previstas na Lei 1.079/1950 tem como consequência uma punição grave. É uma condenação de efeitos severíssimos, que está no mesmo nível dos efeitos penais propriamente ditos. Também não se pode esquecer que a referida Lei estabelece a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal ao processo do impeachment (art. 38), o que, de modo definitivo, nos remete à racionalidade jurídico-penal.
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Por último, de forma breve, aponta-se que, no Direito Penal, inexiste a chamada “responsabilidade penal objetiva”. Há controvérsia quanto à responsabilidade de pessoas jurídicas nos crimes ambientais, por haver previsão na CRFB, representando uma exceção à regra da inexistência de responsabilidade penal objetiva. Porém, o entendimento consolidado jurisprudencial é que a sociedade empresária não pode cometer crime (por ser ausente o elemento subjetivo quanto à sociedade), mas pode ser responsabilizada, junto aos seus representantes. Portanto, é pressuposto de existência do crime a existência de um elemento subjetivo.
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Ultrapassadas essas preliminares, vamos ao "mérito" da questão: se a Presidente só pode perder o cargo por ter cometido crime (de responsabilidade, mas que é crime), pergunta-se: o que é crime? Qual o seu conceito? Crime, pela teoria tripartida adotada pelo nosso ordenamento jurídico, é composto por três elementos: fato típico, antijurídico e culpável.
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Considero o primeiro elemento – o fato típico – como um elemento "positivo". É necessário o preenchimento de todos seus requisitos, plenamente, para que seja considerado atendido.
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Já a antijuridicidade e a culpabilidade são elementos "negativos". Se houver a incidência de qualquer hipótese excludente destes dois últimos, afastará a incidência de ilegalidade ou a incidência da reprovabilidade da conduta do agente, respectivamente.
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Comentarei apenas sobre o primeiro elemento, pois será suficiente para demonstrar a fragilidade da acusação no caso da emissão dos decretos de créditos adicionais. Em verdade, com essa análise derruba-se a hipótese de cometimento de crime já na primeira etapa da análise de sua existência, como exponho em seguida.
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Para que um fato seja típico deverá preencher, cumulativamente, quatro requisitos: a conduta, o nexo de causalidade, o liame entre esta conduta e o resultado, o próprio resultado e a tipicidade, que pode ser traduzida como a previsão expressa em lei penal anterior ao fato e lesão real ao bem jurídico que a norma penal visava proteger.
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Infelizmente, a jurisprudência brasileira ainda não aceita, de forma expressiva, a tipicidade conglobante de Zaffaroni, que sustenta que, além da tipicidade formal (previsão expressa em lei penal anterior ao fato) e tipicidade material (lesão real ao bem jurídico), deve a conduta do agente ser contrária ao ordenamento jurídico como um sistema único e coeso. Não pode, sob pena de haver séria contradição dentro do ordenamento jurídico, para o ilustre doutrinador argentino, ocorrer crime se uma norma no ordenamento jurídico fomenta a conduta aparentemente típica. Um exemplo clássico é a do carrasco, que, a priori, estaria cometendo homicídio, mas o faz, pois uma norma permite esta conduta. Outrossim, não estaria o médico cometendo lesão corporal, se o faz balizado por uma autorização legal.
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Se adotada de forma expressiva em nosso ordenamento, poderia ser mais um argumento contrário ao processo de impeachment, tendo em vista que, indubitavelmente, a conduta praticada pelo governo federal, no que tange à abertura de créditos adicionais suplementares, era fomentada por um entendimento da corte competente para julgamento de tais atos.
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Mas o problema do caso em análise é mais simples, tendo em vista que se derruba a tipicidade logo no primeiro elemento do fato típico (conduta), enquanto a tipicidade conglobante, se utilizada, seria o seu último elemento.
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Quanto à conduta – e aqui está o cerne da questão – esta é uma "ação humana, voluntária, comissiva ou omissiva, dolosa ou culposa". A conduta pode ser culposa (conduta imprudente, negligente ou imperita), se EXPRESSAMENTE prevista em lei, ou, senão, dolosa.
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A conduta dolosa, conforme o artigo 18, inciso I, do Código Penal, é aquela que revela que "o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo". Para que seja dolosa, portanto, além do elemento cognitivo (o agente SABE que está cometendo crime) e volitivo (o agente QUER cometer o crime), mediante um raciocínio lógico, é necessário que o agente possa PREVER a ocorrência do resultado. Ora, ninguém quer algo ou assume o risco de produzi-lo, se não consegue, ao menos, PREVER que este resultado PODE ocorrer.
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Considerando o entendimento exposto, como a presidente da República poderia PREVER a ocorrência do resultado de um CRIME, se ao tempo da emissão de seus atos, estes eram considerados LEGAIS pela corte de contas competente para apreciar tais atos? Você, por exemplo, poderia prever que daqui a exatamente um ano, consumir bebida alcoólica seria crime? E você acharia justo ser punido daqui a um ano, por ter consumido bebida alcoólica hoje, quando tal ato é perfeitamente legal?
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Portanto, observa-se que o crime de responsabilidade, por não prever EXPRESSAMENTE uma modalidade culposa (imprudência, negligência ou imperícia), tem, NECESSARIAMENTE, que ser doloso. E, para ser doloso, é também NECESSÁRIO que a ocorrência do resultado ilegal seja PREVISÍVEL. Acham que era previsível a ocorrência de um resultado ilegal, quando quem julga isto AVALIZAVA tais condutas? Onde está o dolo? Como poderia ele existir diante desta IMPREVISIBILIDADE? Condenar alguém pelo cometimento de um crime, quando os próprios pressupostos subjetivos de EXISTÊNCIA de tal crime não estão presentes, é gravíssimo. É uma ruptura irreparável.
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Lamentavelmente, é flagrante a ocorrência de uma manobra, uma maquiagem jurídica para usurpar o poder de alguém que não cometeu qualquer ato que permitisse a sua retirada do cargo mediante o impeachment. Os requisitos para que fosse processada por meio deste instrumento não foram preenchidos. Nessas condições e tomando a expressão utilizada pela ciência política, isto é GOLPE, sim.