Os livros de literatura
sempre compartilharam espaços com os jurídicos em minha mesa de cabeceira.
Por um lado, a ficção, o exercício
do imaginário que revela a alma humana com seus dilemas e angústias.
Por outro, as narrativas
destinadas a compreender/aplicar o direito como um sistema voltado a
estabilizar ou manter estáveis as relações interpessoais do mundo real.
Mais que o simples uso das
palavras, há aspectos que aproximam a literatura e o direito. Um desses é como
o direito trabalha com o fato.
Se examinarmos a
experiência jurídica, vamos constatar que o fato social se qualifica como jurídico
na medida em que o sistema de direito dê tratamento a ele.
Uma vez acontecido o fato
jurídico, muitas vezes se faz necessário levá-lo ao Judiciário. Na prática, o
fato será comunicado por meio de uma peça narrativa (petição inicial). O réu da
ação responde apresentando também sua narrativa sobre o fato. Por fim, o juiz
decretará a versão que prevalecerá por meio da sua própria narrativa.
Não há dúvidas de que a
narração é aspecto comum entre o direito e a literatura. Mas isso é apenas
superficial.
Os relatos de todos os
envolvidos – inclusive o final, do juiz – não passam de versões narrativas de
um fato. A versão não se confunde com o fato, porque ambos têm natureza e
tempos distintos. A versão é apenas uma tentativa atual de resgatar o fato passado.
Por mais documental que seja o fundamento da pretensão levada a juízo, deve ter
como instrumento uma narrativa.
Nesse sentido, a
narrativa jurídica é ficcional tal qual a literária. Afinal, nenhuma das duas narrativas
tem condições de aprisionar o fato. Ambas têm o objetivo imediato de, por meio
das palavras, seduzir o destinatário para que apreenda o fato na consciência. E,
nessa sedução, é o imaginário humano que se vê exigido tanto do lado do
narrador quanto do leitor. Não se pode esquecer que é também no imaginário que repousam
os sonhos, os medos, as aversões e os desejos mais íntimos do ser humano.
Consciente dessa
característica literária do direito, o juiz adquire mais importância do que
normalmente lhe é reconhecida. O juiz, como o redator da versão final do fato, deve
desempenhar um papel de equilíbrio frente às partes que se encontram em
conflito.
Toda essa circunstância exige
do juiz a manutenção do equilíbrio emocional como um mandamento sagrado. Deve estar
apto a escutar e a reconsiderar suas posições não só como pressuposto de
civilidade, mas como fruto da dialética processual. Por isso, também não poderá
ser refém de sua vaidade ou de suas convicções ideológicas ou políticas. Somente
assim poderá controlar a vocação do imaginário de surpreender e trair.
Portanto, não está apto para a magistratura aquele que sistematicamente perde a calma ao ser contestado ou contrariado, porque isso comprometerá a construção de sua narrativa. Será inevitavelmente traído por seu imaginário. E, no exercício da judicatura, correrá sério risco de converter o direito em uma comédia ou mesmo em uma tragédia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário