A sujeição
do Brasil à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – Parece que não há dúvidas quanto a isso. Por
meio do Decreto Legislativo 89, de 03 de dezembro de 1998, o Congresso Nacional aprovou a solicitação de reconhecimento obrigatório da
jurisdição a CIDH. O Decreto n.4.463/2002 reconheceu como obrigatória e por prazo indeterminado a jurisdição daquela
Corte.
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Os tratados
sobre direitos humanos são normas constitucionais ou supralegais? – Os
direitos humanos objeto de julgamento pela CIDH estão consignados basicamente na
Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (São José da Costa Rica, 1969),
que foi promulgada e internalizada no ordenamento jurídico brasileiro por meio
do Decreto n. 678/1992.
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O art. 5º, § 2º, da Constituição da República assegura
que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros
decorrentes dos tratados internacionais.
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Predomina no STF o entendimento de que o tratado
internacional sobre direitos humanos é considerado como norma supralegal, mas
infraconstitucional (RE 466.343-1/SP).
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Vale observar que o Ministro Celso de Mello entendeu
que os tratados internacionais de direitos humanos têm estatura constitucional.
Mas foi voto vencido. A doutrina autorizada de Valério Mazzuoli também critica
a posição do STF com argumentos bastante convincentes. De outra parte, porém, reconhece
que esse entendimento do STF já significa um avanço em relação à posição
anterior ainda mais conservadora (Curso de Direito Internacional Público, São
Paulo, RT, 2011, pp. 375-384).
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Com a nova configuração do STF, o entendimento pode
ser alterado.
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O direito de
recorrer de sentenças condenatórias – A ausência
do duplo grau de jurisdição foi um dos pontos questionados no processamento da
AP 470 (“mensalão”).
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Segundo a Convenção Americana de Direitos Humanos,
todo aquele considerado culpado de um delito tem o direito de recorrer da
decisão ante o juiz ou tribunal superior (Art. 8, “h” - aqui).
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A jurisprudência da CIDH enfrentou o tema detidamente
no conhecido caso Barreto Leiva v. Venezuela. A única exceção admitida ao
direito de recorrer seria se o Estado signatário tivesse feito ressalva com
relação a este dispositivo ao firmar a Convenção. Nesse sentido, vide especialmente
o parágrafo n. 86 da referida decisão.
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Como se
poderia respeitar o direito de recorrer dos réus na AP 470?
– Todos (inclusive os que não ocupavam cargo público) foram julgados pelo STF
com base no art. 102, I, b, da Constituição, que estabelece o privilégio de
foro. Considerando que é a última instância, o julgamento penal restou reduzido
a uma única decisão.
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Mesmo aqueles que tiveram direito aos Embargos
infringentes, o julgamento se deu pelo mesmo órgão e não por outro superior.
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Diante da situação, como respeitar o direito de
recorrer dos réus sem descumprir a Constituição Federal?
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Caso se entendesse os tratados sobre direitos
humanos como normas constitucionais – tese com a qual concordamos –, o problema
seria menos complexo. Tal direito figuraria como parte integrante do art. 5º
que elenca os direitos fundamentais. Haveria, então, tensão com o art., 102, I,
b da mesma Constituição. Aplicando a ponderação de interesses, prevaleceria o
art. 5º. O direito ao privilégio de foro definitivamente não é um direito
fundamental. Muito ao contrário, configura uma exceção ao princípio da
igualdade, um verdadeiro privilégio como o próprio termo indica. Por isso, o direito ao privilégio de foro não tem
aptidão para preponderar sobre um direito humano e fundamental.
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Considerando a posição atual do STF de entender tais
tratados como normas supralegais – mas infraconstitucionais – o caminho para
evitar a violação de direitos humanos seria interpretar o Código de Processo
Penal, suas normas complementares e o Regimento Interno do STF à luz da
Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos.
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O Código de Processo Penal é explícito: “Art. 1º O processo penal reger-se-á, em todo
o território brasileiro, por este Código, ressalvados:
I - os tratados, as convenções e regras de direito internacional; (...)”. Portanto,
fácil é a conclusão de que o processo penal não pode tramitar em descompasso
com o Pacto de São José da Costa Rica.
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O Regimento do STF, que foi recepcionado como lei
formal na ordem jurídica brasileira, também não poderá contrariar qualquer
tratado, afinal, os tratados são considerados, pelo menos, normas supralegais.
A Lei que contrariar um tratado deverá ser considerada inválida.
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A partir de uma perspectiva de superação do
positivismo legalista, mas sem desatender a Constituição da República, acredito
que a solução seria remeter a AP 470 para uma Turma do STF para que julgasse em
primeira instância e, posteriormente, o Pleno, em grau de recurso.
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Consequências
de eventual sentença da CIDH – No caso da AP 470, o direito
de recorrer não foi atendido em sua plenitude. Houve réus que sequer tiveram
direito à interposição de embargos infringentes. O caso, como se viu
inicialmente, pode ser objeto de apreciação pela CIDH. No caso de eventual
sentença favorável aos demandantes junto à CIDH, quais seriam os efeitos no Brasil?
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Inicialmente, é preciso registrar que a CIDH não
significa uma instância superior ao STF. Portanto, não haveria um novo julgamento da causa. A sentença poderá
declarar a existência violação de direito humano, determinar ao Brasil (sujeito passivo) a sua restauração
imediata e, se for o caso, fixar indenização ou compensação justa.
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Não é procedente o argumento de que a Corte está voltada
apenas para a responsabilidade civil, como se costuma alegar até com certo
desdém.
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No caso do duplo grau em análise, uma decisão CIDH que
venha a declarar a violação de direitos humanos também determinaria ao Brasil que
fosse refeito parte do julgamento da AP 470 de forma a dar a oportunidade ao
réu de recorrer da decisão condenatória. O acórdão do STF deveria, então, ser
desconstituído.
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Poder-se-ia questionar, ainda, o limite da coisa
julgada. Como poderia o STF julgar novamente tendo o acórdão condenatório
transitado em julgado? Como superar a cláusula pétrea dos efeitos da coisa
julgada prevista pelo art. 5º, XXXVI, da Carta da República?
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Com uma nulidade deste quilate, não é possível suceder
o trânsito em julgado. É a mesma racionalidade que a jurisprudência brasileira tem
empregado para admitir a conhecida “querela nullitatis.” O exemplo clássico é o
da ausência da citação dos proprietários de um imóvel na ação de usucapião. A
qualquer tempo a sentença poderá ser desconstituída em razão da gravidade da
lesão do direito.
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