Inicialmente,
necessário se faz uma breve contextualização sobre alguns aspectos.
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O primeiro deles é que num dos atos
imputados à Presidente da República como caracterizadores de crime de
responsabilidade, realizados em julho e agosto de 2015 (Decretos que abriram
créditos adicionais suplementares), só passaram a ser considerados ilegais pelo
Tribunal competente em outubro de 2015. No momento da emissão de tais atos,
estes eram considerados corretos.
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Em segundo lugar, apesar do impeachment ser
um processo que apresenta aspectos políticos e estar previsto pela
Constituição, não pode, de forma alguma, se sobrepor à lei. Há um requisito
jurídico para que se efetive o impeachment que não pode ser desconsiderado: o
cometimento de crime de responsabilidade.
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É muito difícil negar a característica
penal do processo do impeachment. O fato de estar previsto na Constituição não
nega que a realização de determinadas condutas previstas na Lei 1.079/1950 tem
como consequência uma punição grave. É uma condenação de efeitos severíssimos,
que está no mesmo nível dos efeitos penais propriamente ditos. Também não se
pode esquecer que a referida Lei estabelece a aplicação subsidiária do Código
de Processo Penal ao processo do impeachment (art. 38), o que, de modo
definitivo, nos remete à racionalidade jurídico-penal.
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Por último, de forma breve, aponta-se que,
no Direito Penal, inexiste a chamada “responsabilidade penal objetiva”. Há
controvérsia quanto à responsabilidade de pessoas jurídicas nos crimes
ambientais, por haver previsão na CRFB, representando uma exceção à regra da
inexistência de responsabilidade penal objetiva. Porém, o entendimento
consolidado jurisprudencial é que a sociedade empresária não pode cometer crime
(por ser ausente o elemento subjetivo quanto à sociedade), mas pode ser
responsabilizada, junto aos seus representantes. Portanto, é pressuposto de
existência do crime a existência de um elemento subjetivo.
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Ultrapassadas essas preliminares, vamos ao
"mérito" da questão: se a Presidente só pode perder o cargo por ter
cometido crime (de responsabilidade, mas que é crime), pergunta-se: o que é
crime? Qual o seu conceito? Crime, pela teoria tripartida adotada pelo nosso
ordenamento jurídico, é composto por três elementos: fato típico, antijurídico
e culpável.
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Considero o primeiro elemento – o fato
típico – como um elemento "positivo". É necessário o preenchimento de
todos seus requisitos, plenamente, para que seja considerado atendido.
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Já a antijuridicidade e a culpabilidade são
elementos "negativos". Se houver a incidência de qualquer hipótese
excludente destes dois últimos, afastará a incidência de ilegalidade ou a
incidência da reprovabilidade da conduta do agente, respectivamente.
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Comentarei apenas sobre o primeiro
elemento, pois será suficiente para demonstrar a fragilidade da acusação no
caso da emissão dos decretos de créditos adicionais. Em verdade, com essa
análise derruba-se a hipótese de cometimento de crime já na primeira etapa da
análise de sua existência, como exponho em seguida.
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Para que um fato seja típico deverá
preencher, cumulativamente, quatro requisitos: a conduta, o nexo de
causalidade, o liame entre esta conduta e o resultado, o próprio resultado e a
tipicidade, que pode ser traduzida como a previsão expressa em lei penal
anterior ao fato e lesão real ao bem jurídico que a norma penal visava
proteger.
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Infelizmente, a jurisprudência brasileira
ainda não aceita, de forma expressiva, a tipicidade conglobante de Zaffaroni,
que sustenta que, além da tipicidade formal (previsão expressa em lei penal
anterior ao fato) e tipicidade material (lesão real ao bem jurídico), deve a
conduta do agente ser contrária ao ordenamento jurídico como um sistema único e
coeso. Não pode, sob pena de haver séria contradição dentro do ordenamento
jurídico, para o ilustre doutrinador argentino, ocorrer crime se uma norma no
ordenamento jurídico fomenta a conduta aparentemente típica. Um exemplo
clássico é a do carrasco, que, a priori, estaria cometendo homicídio, mas o faz,
pois uma norma permite esta conduta. Outrossim, não estaria o médico cometendo
lesão corporal, se o faz balizado por uma autorização legal.
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Se adotada de forma expressiva em nosso
ordenamento, poderia ser mais um argumento contrário ao processo de
impeachment, tendo em vista que, indubitavelmente, a conduta praticada pelo
governo federal, no que tange à abertura de créditos adicionais suplementares,
era fomentada por um entendimento da corte competente para julgamento de tais
atos.
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Mas o problema do caso em análise é mais
simples, tendo em vista que se derruba a tipicidade logo no primeiro elemento
do fato típico (conduta), enquanto a tipicidade conglobante, se utilizada,
seria o seu último elemento.
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Quanto à conduta – e aqui está o cerne da
questão – esta é uma "ação humana, voluntária, comissiva ou omissiva,
dolosa ou culposa". A conduta pode ser culposa (conduta imprudente,
negligente ou imperita), se EXPRESSAMENTE prevista em lei, ou, senão, dolosa.
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A conduta dolosa, conforme o artigo 18,
inciso I, do Código Penal, é aquela que revela que "o agente quis o
resultado ou assumiu o risco de produzi-lo". Para que seja dolosa,
portanto, além do elemento cognitivo (o agente SABE que está cometendo crime) e
volitivo (o agente QUER cometer o crime), mediante um raciocínio lógico, é
necessário que o agente possa PREVER a ocorrência do resultado. Ora, ninguém
quer algo ou assume o risco de produzi-lo, se não consegue, ao menos, PREVER
que este resultado PODE ocorrer.
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Considerando o entendimento exposto, como a
presidente da República poderia PREVER a ocorrência do resultado de um CRIME,
se ao tempo da emissão de seus atos, estes eram considerados LEGAIS pela corte
de contas competente para apreciar tais atos? Você, por exemplo, poderia prever
que daqui a exatamente um ano, consumir bebida alcoólica seria crime? E você
acharia justo ser punido daqui a um ano, por ter consumido bebida alcoólica
hoje, quando tal ato é perfeitamente legal?
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Portanto, observa-se que o crime de
responsabilidade, por não prever EXPRESSAMENTE uma modalidade culposa
(imprudência, negligência ou imperícia), tem, NECESSARIAMENTE, que ser doloso.
E, para ser doloso, é também NECESSÁRIO que a ocorrência do resultado ilegal seja
PREVISÍVEL. Acham que era previsível a ocorrência de um resultado ilegal,
quando quem julga isto AVALIZAVA tais condutas? Onde está o dolo? Como poderia
ele existir diante desta IMPREVISIBILIDADE? Condenar alguém pelo cometimento de
um crime, quando os próprios pressupostos subjetivos de EXISTÊNCIA de tal crime
não estão presentes, é gravíssimo. É uma ruptura irreparável.
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Lamentavelmente, é flagrante a ocorrência de uma manobra,
uma maquiagem jurídica para usurpar o poder de alguém que não cometeu qualquer
ato que permitisse a sua retirada do cargo mediante o impeachment. Os
requisitos para que fosse processada por meio deste instrumento não foram
preenchidos. Nessas condições e tomando a expressão utilizada pela ciência
política, isto é GOLPE, sim.
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