O procedimento
do impeachment é um julgamento
jurídico-político voltado a destituir o chefe do Poder Executivo. É jurídico
porque se exige a configuração de crime de responsabilidade como um pressuposto
para que haja a condenação. É político porque é aceito pela Câmara, apreciado e
julgado pelo Senado em processo presidido pelo Presidente do STF.
Já o recall é o procedimento de destituição
do chefe do Poder Executivo por razões puramente políticas. Trata-se de uma
espécie de reprovação de desempenho ou uma “moção de desconfiança”. Mais
tecnicamente, se pode dizer que é uma revogação do mandato que não está vinculada à existência
do pré-requisito jurídico de cometimento de crime.
Vale lembrar
que o Professor Fábio Konder Comparato sugeriu a inclusão do recall na elaboração da Constituição de
1988, mas foi rejeitada a sua sugestão. Foi incluído somente o impeachment.
É preciso ter
cuidado para não se confundir os institutos. No impeachment há a necessidade de
verificação de um pressuposto de natureza jurídica, que é a existência de crime
de responsabilidade. Desconsiderar este pressuposto significará reduzir o
impeachment a um processamento puramente político. Significará transformar o impeachment em recall sem amparo Constitucional.
***
Pelo teor dos
discursos dos parlamentares da Comissão até o momento (dia 08.04), não se está enfrentando
a discussão sobre o pressuposto jurídico. Os discursos vêm caminhando para a lógica
de que a Presidente deve ser condenada pelo “conjunto da obra”. Não é um bom
caminho porque carece de fundamento na Carta da República.
Pode-se
flexibilizar no aspecto político com base na conveniência e oportunidade, mas
não no jurídico. Poderemos ter a configuração do crime de responsabilidade –
atendendo o requisito jurídico – e o julgamento político entender que, ainda
assim, não é melhor para a República destituir o mandatário. Nesse sentido, o
próprio Michel Temer o admite em sua obra Elementos
de Direito Constitucional (1997, p. 165).
O caminho
contrário, entretanto, não é viável por conta do aspecto jurídico. Condenar por
conveniência e oportunidade sem a configuração de crime de responsabilidade não
seria permitido. Seria descumprir o art. 85 da Constituição.
Aliás, é
interessante observar que o Ministro Gilmar Mendes ressalta, em sua obra Curso de Direito Constitucional, o
caráter jurídico do processo de impeachment ao relembrar que “restou superada a tese, sustentada pelo
Ministro Brossard, no sentido da não-cognoscibilidade do mandado de segurança [MS-MC-QO
21.564/DF, DJ 27-8-93] em razão do
caráter eminentemente político da controvérsia” (2008, p. 927). Referia-se
a apreciação judicial do processo do impeachment mesmo da fase preliminar de
aceitação pela Câmara, onde se verifica no primeiro momento o pré-requisito
jurídico. No mesmo passo, o Ministro relembra o MS 20.941/41 o qual reafirma
que há aspectos jurídicos desse processo que podem ser submetidos ao controle
jurisdicional (2008, p. 927).
***
Juridicamente,
acredito que não há a configuração de crime de responsabilidade contra a
Presidente Dilma. Ora faltam elementos probatórios, ora tipicidade. Mas falta
também a indicação do elemento subjetivo da conduta, que é o dolo. No caso, o obstáculo
ao impeachment está no aspecto jurídico e não no político.
Não tratarei
de todas as condutas apontadas pela denúncia do Reale Jr./Bicudo e da OAB. O
objetivo não é fazer o papel de advogado da Presidente, mas de comentar
determinados aspectos que podem ter repercussão futura na vida jurídica do
País.
Dois pontos parecem
relevantes e merecem comentários. São sobre as duas condutas mais destacadas na
imprensa porque são as que possuem comprovação fática: as chamadas “pedaladas
fiscais” e os decretos de abertura de créditos adicionais. Comecemos pelas
pedaladas.
As denúncias
de impeachment com relação às pedaladas se basearam na decisão do TCU de 2015. O
TCU decidiu alterar o próprio entendimento jurídico que mantinha desde a
promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (2000).
Antes de
qualquer coisa, é prudente destacar que é perfeitamente lícito ao TCU – e a
qualquer tribunal ou juízo – alterar o seu entendimento. O direito é mesmo
dinâmico porque é dotado de historicidade.
No entanto, o
novo entendimento não poderia ser aplicado a fatos anteriores resultando em
julgamento de contas como irregulares, tal como aconteceu no caso. Neste
particular, o TCU violou o princípio da segurança jurídica e a disposição expressa
da Lei 9.784/90. Uma verdadeira “pedalada hermenêutica”:
Art. 2º (...)
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre
outros, os critérios de:
(...)
XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta
o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.
Enfrentando o mérito
da questão, – independente da referida “pedalada hermenêutica” – o TCU entendeu
que caracterizou operação de crédito (empréstimo) quando a União deixou de
repassar o dinheiro à Caixa Econômica Federal e esta, sem receber recursos, ainda
assim efetuou pagamentos a terceiros (beneficiários de programas sociais. Bolsa
Família, por exemplo).
Esclarece-se que, segundo a Lei de Responsabilidade
Fiscal - LRF, para a realização da operação de crédito é necessário o
cumprimento de vários requisitos e estaria proibido à União fazê-la com bancos
federais. Por isso, segundo a denúncia, praticou ato ilícito que violou a LRF
para evitar desrespeitar a meta fiscal prevista no orçamento (mas que é apurada
durante a execução financeira do orçamento). Respeitosamente, não há a menor base para essa conclusão do TCU. Explico em seguida.
Em primeiro
lugar, é de se reconhecer que é um método (retardar repasses) reprovável de cumprir a meta fiscal.
Não há dúvida sobre isso. O fato dos antecessores de Dilma já o terem feito não
reduz ou altera a irregularidade. Mas esse método para evitar descumprir a meta
fiscal não o faz descumprindo a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, como ficará demonstrado
a seguir. Não obstante, não existe crime de responsabilidade por violação à LRF,
mas sim às leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA).
A Caixa firmou
contrato de serviços com a União. Mas por que isso? Elas são duas pessoas jurídicas distintas uma da
outra. Lembre-se também que, do ponto de vista jurídico, a Chefe do Poder
Executivo Federal não detém superioridade hierárquica com relação ao Presidente
da Caixa e a nenhum outro dirigente de entidade da Administração Pública
Indireta. Portanto, a Presidente não pode falar em nome do Presidente da Caixa.
Cada qual se responsabiliza por seus atos. Por tudo isso, é preciso ter um
vínculo jurídico que as ampare a transferir recursos entre si. Pode ser um negócio
jurídico (contrato, convênio ou termo de parceria), tal como foi feito, ou
mesmo a Lei.
Pois bem, no
caso, a Caixa Econômica tinha a obrigação de efetuar os pagamentos a terceiros beneficiários
de programas sociais e a União de repassar os recursos para esse fim. A União não
efetuou o repasse na data estipulada. Descumpriu uma obrigação assumida.
A CEF,
por outro lado, cumpriu o que pactuou. Portanto, a Caixa não decidiu efetuar os
pagamentos a seu cargo sem ter recebido os recursos da União como forma de ajudá-la
a dar uma “pedalada”, ou, ainda, a Caixa não efetuou o pagamento para
aproveitar a oportunidade para fazer um empréstimo (operação de crédito) sem a
transferência de dinheiro ao contratante. Ela efetuou o pagamento porque estava
cumprindo uma obrigação assumida anteriormente. Simples assim.
Além disso, a
escolha da Caixa Econômica para a execução da operação do Bolsa Família, por
exemplo, não foi uma opção discricionária da Chefia do Executivo, pois a Lei
10.836/2004 assim o determinou: Art. 12.
Fica atribuída à Caixa Econômica Federal a função de Agente Operador do
Programa Bolsa Família, mediante remuneração e condições a serem pactuadas com
o Governo Federal, obedecidas as formalidades legais.
Aliás, a CEF
sequer poderia invocar o princípio da “exceção do contrato não cumprido” para
deixar de efetuar os pagamentos a seu cargo. Essa teoria não se aplica ao
direito público tal como foi concebida no direito privado. Não tinha como deixar
de pagar, uma vez que deveria cumprir o firmado no contrato.
No direito
público, as hipóteses para usar o princípio da “exceção do contrato não
cumprido” são tipificadas. A que poderia ser utilizada pela Caixa é a contida
no art. 78, XV, da Lei 8.666/93 que autoriza a suspensão da execução do negócio
jurídico ou a sua rescisão quando o atraso do pagamento superar a 90 dias,
ressalvados os casos de calamidade pública.
Não é por
outra razão que o próprio contrato de execução do Bolsa Família, por exemplo,
contempla em sua subclásula oitava essa possibilidade em caso de atraso:
Subcláusula Oitava - Na eventual insuficiência de recursos na Conta
Suprimento para o pagamento de benefícios constantes das folhas de pagamento
das Ações de Transferência de Renda, fica assegurado à CONTRATADA o direito de
optar pela suspensão deste serviço até que seja normalizado o fluxo financeiro,
conforme Inciso XV do art. 78, da Lei n°8.666, de 1993.
Cheguei a ver
comentários de que a Caixa poderia não efetuar os pagamentos aos beneficiárias
por causa do inadimplemento da União e suspender imediatamente a execução deste
contrato com base nesta cláusula. Entendimento incorreto. A cláusula remete ao
art. 78, XV que estipula o prazo de 90 dias.
Assim, como
entender que o atraso no repasse converte a situação já prevista em lei e no
contrato em uma operação de crédito que é um novo contrato? Nem mesmo na China
isso seria possível. E digo literalmente. O problema aqui é mais de lógica
jurídica do que propriamente de Direito Administrativo contratual.
Inobstante,
tal inadimplemento não foi praticado pessoalmente pela Presidente da República,
porque não assinou diretamente os instrumentos e sim o Ministro; nem se trata
de um ato de “direção superior da administração federal” que é sua atribuição
por força do disposto no art. 85, II, da Constituição.
A conduta punível
deve ser personalíssima, de forma a que há que se provar a participação pessoal
da acusada em ato que se configure um crime de responsabilidade. Ainda que
fosse ato que caracterizasse crime de responsabilidade – mas não é, como se viu
– não basta dizer que “ela sabia” ou “não é crível que ela não tenha emitido
uma ordem” ou coisas do gênero.
Não havendo prova de participação dolosa em
condutas criminosas, impossível a responsabilização apelando apenas para o
aspecto político. Agir assim seria confundir impeachment com recall.
As chamadas
“pedaladas fiscais” caracterizam, em verdade, inadimplência da União, que têm
efeitos jurídicos próprios, é claro. Os juros são um deles. Mas, um desses
efeitos não é, com toda
certeza, a sua conversão em operação de crédito. Com todo o respeito, o
entendimento do TCU não se sustenta e, por consequência, também não se sustenta
a denúncia da caracterização de crime de responsabilidade feita a partir desta
conduta. Ademais, repita-se que não existe crime de responsabilidade por
violação à LRF (se fosse ela violada, o que também não é o caso).
Enfim, interpretar
que o inadimplemento da União e o adimplemento da Caixa configuram operação de
crédito equivale a uma verdadeira “punhalada hermenêutica”.
***
Quanto à
abertura de créditos adicionais suplementares em desacordo com a Lei de
Responsabilidade Fiscal, o fato também está provado e é incontroverso.
Acusa-se a
Presidente de haver baixado Decretos para tanto que violaram a meta fiscal
fixada pelas leis orçamentárias em cumprimento à LRF. E, também, por não ter
feito o contingenciamento da despesa como manda a lei. De pronto, nos assalta
uma pergunta: como cobrar o contingenciamento com base na meta fiscal se já
havia sido editado projeto de lei para alterá-la? Incompreensível.
A meu juízo, a
questão desemboca, no fundo, na discussão acerca da possibilidade ou não de
alteração da meta fiscal. Acredito ser possível, dentro de determinadas
condições excepcionais que cabe ao governo expor detalhadamente. Decerto que
não pode ser a regra, mas exceção. Em razão disso, não vejo como ato ilegal ou
inconstitucional a ensejar o impeachment.
Não comentarei
a questão aqui, pois já o fiz em dezembro de 2014, momento em que analisei essa
possibilidade do ponto de vista do Direito Financeiro (veja aqui).
Neste momento
limito-me a chamar a atenção para um dos pontos importantes da referida análise
que tem ficado de fora dos debates. É a função do Anexo de Riscos Fiscais que é
um dos anexos da LDO.
Esse documento expõe as situações de risco que seriam
capazes de comprometer o equilíbrio fiscal e, por isso, amparam e justificam ações
futuras. Tal situação registrada na Lei foi aprovada pelo próprio Congresso ao
aprovar a LDO. O que cabe ao governo é comprovar que utilizou a metodologia
correta para apuração das metas e que foi a realidade que o surpreendeu.
Neste ponto,
relembro que o Presidente dos Estados Unidos foi obrigado a propor alteração da
meta fiscal após a crise de 2008, quando cerca de 800 mil servidores do Estado
americano ficaram sem receber até que o Poder Legislativo autorizasse a
alteração da meta fiscal.
Uma vez
autorizada, permitiu a emissão de mais dólares e regularização da situação. A
medida foi elogiada por muitos. Diziam que o Presidente Obama mostrou
inteligência, pois encontrou a solução sem violar o orçamento e com o máximo
respeito à democracia e ao princípio da separação dos Poderes. Pelo visto, o
exemplo americano desta vez não foi bem acolhido nas terras brasileiras.
***
O fato é que todos
queremos um País melhor. Sou contra a corrupção. Deve ser apurada e punida,
seja o infrator de que partido for. É importante ser firme neste aspecto. E sei
que estamos todos aflitos e cansados neste momento.
No entanto, espero
que todas as medidas sejam adotadas dentro do Estado de Direito. Não podemos
nos igualar aos malfeitores. Não se corrige erros cometendo novos erros. O
argumento de que os fins justificam os meios não poderá vencer. E, por favor,
deixemos os personalismos e também os antipersonalismos que servem ao mesmo
propósito.
Por essas
razões, espero que os pedidos de impeachment que levantaram as questões
comentadas sejam rejeitados se não restar caracterizado crime de
responsabilidade de modo objetivo e inequívoco. Espero que sejam rechaçados do
mesmo modo que o foram diversos outros pedidos de impedimento ao longo da
história que não lograram comprovar a configuração de crime de
responsabilidade.
Para
avançarmos enquanto País e sociedade, necessitamos de firmeza e coragem, mas
também de paciência e serenidade. Não nos deixemos atuar por ondas emotivas,
ufanismos interesseiros ou maniqueísmos imaturos. Não espalhemos o espírito de
guerra e de confronto sangrento. Saibamos assumir nossa opinião, mas buscando a
conciliação e mantendo o respeito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário