Uma vez comentado o princípio da autodeterminação dos povos, passemos à
sua análise em relação ao conflito na Ucrânia.
Os fatos envolveram a tomada de poder em Kiev, a deposição do presidente,
o referendo realizado na Crimeia com a anexação desta pela Rússia e o
reconhecimento do novo governo Ucraniano pela comunidade internacional.
A tomada de poder na
Ucrânia está vinculada à rejeição ao então presidente Viktor Yanukovich. Segundo
veiculado pela imprensa, o presidente deposto chefiava um governo corrupto e
arbitrário que deveria ser trocado. Neste caso, também se aplica o direito à
autodeterminação dos povos. O procedimento jurídico para a deposição está previsto
no art. 111 da Constituição da Ucrânia (aqui).
Por sua vez, a Crimeia é considerada uma República Autônoma pela própria
Constituição ucraniana (Vide artigos 85, inciso 28 e art. 106. Aqui). Não discutiremos o
perfil da autonomia da Crimeia no Direito Constitucional ucraniano por razões
óbvias.
De outro lado, o artigo 2º da Constituição da Ucrânia estabelece que a
soberania ucraniana se estende por todo o seu território e que é indivisível.
Portanto, alcança o território onde está a Crimeia.
A União Europeia e os Estados Unidos firmaram o entendimento de que a República
Autônoma da Crimeia não teria direito de colocar em votação sua independência,
como efetivamente o fez, em razão da indivisibilidade do povo e do território
da Ucrânia. Representou uma violação à Constituição ucraniana e ao Direito
Internacional.
Luiz Guilherme Arcaro Conci, professor de Direito Internacional Público da
PUC/SP, mostrou que, do ponto de vista jurídico, não se pode falar no povo da
Crimeia, mas somente no povo da Ucrânia, que inclui os habitantes da Crimeia,
razão pela qual tal referendo teria sido ilegal (O povo detém a soberania. Falta definir quem é o povo, Carta
Capital, 29.03.14. Aqui). Pode-se afirmar que o povo é único, porque tem sua unidade garantida pela
respectiva constituição.
Dos argumentos expostos, não pretendemos colocar em questão a relevância
jurídica da unidade e da integridade territorial de um Estado, nem mesmo o
direito de destituir o seu mandatário. O que nos parece merecer atenção
especial para compor a análise jurídica deste caso é a existência dos conflitos
e como o poder foi tomado em Kiev.
Com relação à instalação dos conflitos, o fato é notório, inclusive com
mortos e feridos de ambas as partes. Desde dezembro de 2013, prédios públicos
foram invadidos pelos opositores do governo para exigir, entre outras coisas, a
saída do Presidente. Foi dentro dessas condições que a votação para a deposição
do Presidente se deu. Os meios de comunicação europeus transmitiram e
comentaram esses fatos, especialmente, a RAI TRE italiana e a a Eronews (aqui1 e aqui2). A ordem jurídica interna foi rompida, o que não se adequa ao Direito
Internacional.
Acrescente-se que boa parte dos revoltosos é composta por ativistas do
Svoboda, partido ultranacionalista ucraniano, que não esconde o teor nazista de
seus lemas e os meios violentos de atuação. A Áustria foi sancionada pela União
Europeia (EU), em 1999, por ter admitido que o partido de ultradireita de
feição nazista compusesse o governo. No entanto, causa-nos preocupação que o novo
governo da Ucrânia já tenha sido, imediatamente, reconhecido e aceito pela UE,
inclusive com o firmamento de um acordo.
Ao que se sabe, a EU entendeu que a tomada de poder pela oposição é um
tema interno da Ucrânia. Além disso, afirma não ter havido protestos e nem
ataques na Crimeia, mas somente em Kiev. Por isso, também não haveria razão
jurídica a amparar o referendo realizado na Crimeia.
Não há dúvidas de que o confronto se deu fundamentalmente na capital
ucraniana. Mas a ordem jurídica rompida foi a da Ucrânia como um todo e não
somente a de Kiev. O povo ucraniano e seu território são únicos porque a ordem
jurídica é única. Trata-se da mesma racionalidade jurídica que se empregou para
condenar o referendo na Crimeia.
A considerar o contexto de conflito existente e de rompimento da ordem
jurídica, proponho analisar o referendo na Crimeia a partir dos mesmos
critérios adotados pela Corte Internacional de Justiça para a declaração de
independência de Kosovo, tal como expusemos na postagem anterior (aqui).
Dessa forma, seria o caso de aplicação do princípio da autodeterminação
dos povos – sem o limite da integridade territorial – em favor da população da
Crimeia que se manifestou pela independência e pela anexação à Rússia (97% de
aprovação), com base no art. 1º, Parágrafo 2º, Carta das Nações Unidas e no
Princípio VI, “b”, da Resolução 1541 (XV) do Conselho de Segurança da ONU que
garante a um território não autônomo o direito de associar-se a um Estado
independente.
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