Regressando ao magistério do Direito Administrativo
depois de três anos, um desconforto voltou ao meu juízo: a maioria dos alunos –
e falo de uma maioria expressiva – assiste às aulas para extrair lições para
serem aprovados nos concursos públicos. E nos demandam por isso.
Nada contra a opção pelos concursos públicos. Sou também
concursado. Mas acredito que o problema é o que as bancas dos concursos vêm
exigindo dos candidatos.
Ao ministrar as aulas e indicar o que deve estudar
para passar nos concursos, sou obrigado a falar a verdade. Não é preciso
conhecer em profundidade a teoria do Direito e nem mesmo a disciplina.
A receita para a aprovação se reduz à leitura do texto
da lei, dos resumos e dos informativos do STF e do STJ. E só. Há que ter
dedicação muito especial também de tempo, pois o volume de matérias é grande. E,
então, o aluno acaba seguindo a receita para alcançar o seu objetivo.
Este quadro é preocupante, pois não se aprende de fato
o Direito lendo resumos e informativos jurisprudenciais. No máximo, com esse
tipo de estudo formamos instrutores que repetem, de modo até inconsequente,
conhecimentos do qual não têm conhecimento de causa.
Já presenciei numerosas vezes – nos tribunais ou fora
deles – uma discussão jurídica terminar com a força da autoridade: “o STF já
decidiu assim”. E pronto, terminada a discussão. Como se isso bastasse para se decidir sobre um caso jurídico.
Há uma tendência em cobrar nas provas dos concursos, de
forma exagerada, a jurisprudência dominante nos tribunais superiores. Por
certo, se trata de uma importação acrítica do realismo jurídico norte-americano
em que os precedentes judiciais desempenham um papel fundamental.
É prudente esclarecer que entendemos que a jurisprudência
tem papel importante. O que criticamos é o exagero que se mostra evidente. E,
com isso, perde em importância o conhecimento doutrinário construído ao longo
dos anos.
Toda essa tendência tem refletido nos profissionais
que assumem importantes cargos de carreira jurídica. A cada dia mais, os pareceres, petições,
manifestações, decisões, acórdãos revelam-se como um amontoado de citações de
precedentes judiciais. Há pouca preocupação em discutir a estrutura, o
histórico, a racionalidade de formação do Direito em disputa, e o pensamento dos
mestres que se dedicaram ao tema. A maioria das vezes tudo fica reduzido à
indagação se o caso está ou não de acordo com a jurisprudência vigente.
A tendência também vem refletindo nos livros
publicados. Os mais vendidos são aqueles que apresentam os macetes e trazem
questões de concursos. Ou então aqueles que “esquematizam” ou resumem a matéria
e andam atualizados com a jurisprudência. Enquanto isso os grandes
doutrinadores vão ficando esquecidos.
Há aspectos muito curiosos nesses livros campeões de
vendas. Verifica-se, em quantidade, a citação de trechos de acórdãos para
fundamentar algo que, na verdade, não é sequer o objeto central do acórdão em
seu todo. Isso tem mostrado que qualquer frase ou parágrafo de um acordão pode
converter-se em uma questão de concurso e, por isso, tornar-se uma “doutrina”
nos livros. Nada mais perigoso e desastroso.
É tão contagiante esse mecanismo que nos vemos envolvidos
nele nas tarefas jurídicas cotidianas (e aqui entra um mea culpa). Não é raro buscar,
em primeiro lugar, uma jurisprudência para inserir na peça na crença de que
damos mais credibilidade à tese que defendemos, em vez de apresentar os
doutrinadores, que são os que verdadeiramente conhecem a matéria.
E há quem acredite que essa espécie de “decisionismo”
seja mesmo o verdadeiro Direito. Argumentam que é a realidade do Direito; que é
a única forma de construir o Direito de modo concreto e atualizado. Quem decide
é quem faz o Direito, acreditam. Dizem, ainda, que o Direito é prática e
estamos em uma era de mais dinamismo, em que tudo deve ser mais célere e objetivo.
Respeito essa posição, mas não posso estar de acordo. Vejo-a
como um grave empobrecimento, como um desprezo à cultura jurídica, à doutrina,
ao verdadeiro conhecimento do Direito. Fala-se de “objetividade” e “celeridade”
como se a doutrina fosse sempre um amontoado infindável de subjetividades
flutuantes e aleatórias totalmente incompatíveis com a pós-modernidade, o que
não é verdadeiro.
É bom lembrar que expor a doutrina não significa,
necessariamente, fazer longas peças. Pode-se fazê-lo de modo direto e objetivo
sem deturpar as características do discurso e do espaço da prática forense.
A persistir e se aprofundar esse tipo de concepção “decisionista”
do Direito, as pós-graduações serão voltadas a conhecer somente a
jurisprudência, sendo desnecessários os doutrinadores. Esses cursos perderão a
capacidade de ser solo fértil de produção de conhecimento jurídico.
A consequência natural é que o Direito deixará de desenvolver-se
enquanto ciência, porque terá menos pessoas dedicadas ao seu estudo. É uma dura
sina para a ciência jurídica, mas, infelizmente, previsível.
Enfim, sei que parece uma crítica simplista ao método
dos concursos atuais. Não é fácil a tarefa de selecionar. Tenho consciência
também de que a própria organização das carreiras jurídicas impõe dificuldades.
O sistema judicial, por exemplo, leva o candidato a juiz a tornar-se um verdadeiro
“especialista em generalidades”. É desumano o que deve conhecer (ainda que
superficialmente) um candidato ao cargo de juiz.
O candidato detentor de boa experiência profissional, valoroso
currículo acadêmico e portador de sólida cultura jurídica, provavelmente, não logrará
aprovação na prova objetiva dos concursos se não parar para memorizar a
literalidade dos textos legais em suas minúcias, não conhecer os macetes e
sistemas das bancas examinadoras, além das posições atuais dos tribunais. E,
neste caso, os serviços públicos perdem em qualidade.
Há muitos caminhos para corrigir e aperfeiçoar o
sistema. Um deles é começar por repensar as próprias estruturas das carreiras
jurídicas. Creio que a especialização é um caminho interessante.
O Ministério
Público, por exemplo, poderia criar condições para ter concursos distintos para
área Penal e para a do Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Poder-se-ia
aprofundar a exigência do conhecimento do candidato, obrigando-o a conhecer as
disciplinas com mais profundidade, com exigência de bibliografia de peso. As
cobranças de memorização de textos legislativos seriam abandonadas e também o “decisionismo”.
Há muitas outras sugestões, mas deixemos para outra
oportunidade.
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