O Estado do Rio optou por pagar as categorias que
recebem mais em detrimento das que recebem menos. Isso não é especulação, mas
fato real já comprovado. Foram pagos os vencimentos de novembro, dezembro e o
décimo terceiro daquelas categorias que, em boa parte, têm total capacidade de
defender-se, enquanto os pequenos sequer receberam a remuneração do mês de
novembro de 2016 em pleno meado de janeiro de 2017.
Sejamos claros: um agente público que receba entre quinze
e trinta mil reais, por exemplo, tem condições de chegar a qualquer agência
bancária e contrair responsavelmente um empréstimo, caso necessite. Isso se não
puder sacar de sua própria conta corrente ou baixar recursos de suas aplicações
financeiras.
Já a grande massa de aposentados e aqueles que recebem
remunerações bem mais baixas estão sem condições para comer e pagar pelas
necessidades mais básicas (energia, saúde, água, higiene, escola, aluguel...).
Também não conseguem empréstimos, porque não lhes têm sido concedidos pelas
instituições financeiras precisamente em razão da situação financeira do Estado
do Rio. Um verdadeiro filme de terror.
Não houve a veiculação de qualquer motivação das
autoridades ou dos representantes das categorias privilegiadas acerca da opção
de proteger aos que menos precisam de ajuda. Tudo tem sido feito debaixo de um silêncio
frio, mas eloquente.
Alguns ainda tentam justificar dizendo que muitas das
instituições do Estado que pagaram até o 13º utilizaram os recursos dos seus
próprios fundos. Ora, os fundos são instituídos por lei e não podem ser
utilizados para pagar vencimentos.
No entanto, já que iria se descumprir a lei ao custear
a folha de pagamento da instituição com recursos dos próprios fundos, então por
que não descumprir a lei promovendo a partilha? Se reunindo os recursos
disponíveis de fundos, contas e caixa do tesouro o Estado só tivesse cinquenta
reais para pagar a cada um, que assim se partilhasse. Era necessário repartir o
pouco, especialmente, com quem mais necessita. Não se trataria de mera divisão
aritmética, mas de partilha, que é muito mais que uma conta de divisão.
Entendem
a dimensão da partilha aqueles que sabem que cem reais poderão significar a
mesa posta para a família de quem ganha pouco. Aliás, Jesus Cristo trouxe
eloquentes lições sobre o fenômeno da partilha.
Do ponto de vista jurídico, a escolha de efetuar os
pagamentos da categoria dos mais abastados em detrimento das menos favorecidas violou
frontalmente a Constituição. Do mesmo modo, as decisões judiciais que
determinam arrestos para determinadas categorias, instituições ou poderes sem
observar a situação real de escassez para aplicar a isonomia e a proteção dos
mais frágeis também violaram a Constituição.
Todos são erros desumanos e irreparáveis.
Erros que comprovam, de uma vez por todas, que não existe no Brasil a chamada
Constituição fraternal, que protege as minorias e os mais fracos (talvez o ex-ministro
Carlos Ayres Britto necessite reescrever sua Teoria da Constituição que comenta
sobre o constitucionalismo fraternal).
A verdade é que a situação caótica turva a visão.
Dificulta entender como as coisas estão se passando e onde estão os
cometimentos das barbaridades no campo técnico-jurídico. Tento recobrar a
serenidade para explicar a minha leitura da situação.
A efetivação do pagamento de remuneração de trabalho é
um dever de natureza vinculada. Trabalho sem remuneração é trabalho escravo. É
direito humano. Irrenunciável, assim como os proventos de aposentadoria. Portanto,
não há espaço para a aplicação do juízo de conveniência e oportunidade quando
se fala pagamento da remuneração do trabalho.
No entanto, como no momento os recursos não alcançam
para cobrir a toda a folha de pagamento, o gestor público foi obrigado a fazer
escolhas. É neste ponto que aquela situação que era vinculada converteu-se em
discricionária por força da escassez. Noutros termos, abriu-se à fórceps um
espaço para avaliação da conveniência e oportunidade em razão da incapacidade do
Estado de atuar de modo vinculado. O Estado, então, passou a fazer escolhas.
Como se constatou, as escolhas do Estado favoreceram
ainda mais aos que menos precisam de ajuda, seja no exercício da função
administrativa, seja na jurisdicional ao julgar os casos que lhe são postos
sobre o tema. Portanto, o Estado optou pela covardia.
Já sabemos que é ineficaz elencar os dispositivos violados
da Carta da República, mas, por teimosia e dever de consciência, se pode lembrar
daqueles que tutelam a dignidade da pessoa humana, o mínimo existencial, a moralidade, a isonomia, a
proteção do trabalho, das crianças, dos idosos, dos deficientes, dos cidadãos
de baixa renda, entre outros. Isso sem falar na configuração de ato de
improbidade, crimes comuns e até mesmo crimes de responsabilidade, aqui sim,
sobejamente configurados.