segunda-feira, 24 de março de 2014

A proteção dos direitos humanos por tribunal internacional e a soberania nacional

Há quem entenda que a proteção universal dos direitos humanos é irreconciliável com a soberania. Há estudos importantes nesse sentido. Cito o do Professor internacionalista Valério Mazzuoli: “Soberania e a proteção internacional dos direitos humanos: dois fundamentos irreconciliáveis” (aqui).

Em verdade – é necessário que se esclareça –, Mazzuoli defende, no fundo, que seria inaceitável que se justificasse a impossibilidade de garantir a proteção de um direito humano sob o argumento de incompatibilidade com o direito interno. Acredito que, neste aspecto, tenha razão.

No caso do sistema interamericano de direitos humanos, há quem não acredite na possibilidade de uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos desconstituir um acórdão do Poder Judiciário brasileiro por caracterizar violação à soberania nacional.

Prefiro não tratar o tema na lógica da “irreconciliabilidade” entre o direito interno e a proteção de direitos humanos por parte de um tribunal internacional.

O fundamento específico para a execução de uma decisão da Corte Iteramericana de Direitos Humanos - CIDH no Brasil está nas normas infraconstitucionais com amparo na Constituição Federal, tal como comentamos na postagem anterior (aqui). Relembro que o Código de Processo Penal, as normas complementares ao processo penal e o Regimento Interno do STF não podem contrariar nenhum tratado, especialmente aqueles sobre direitos humanos. Os tratados são considerados normas supralegais e infraconstitucionais. Assim, todas as leis federais, estaduais e municipais devem respeitá-los.

Cremos que há duas soluções quando uma norma infraconstitucional apresenta incompatibilidade com um tratado: a) realizar uma interpretação conforme o tratado, extensiva, restritiva, com ou sem redução de texto normativo; ou b) considerar a norma infraconstitucional como revogada por incompatibilidade.

Na mesma perspectiva, não se pode deixar de registrar que a Carta da República estabelece como princípio fundamental a “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, II, CF). Esse princípio fundamental fixa uma pauta muito clara para o intérprete/aplicador das normas infraconstitucionais e também das demais normas constitucionais. Essa racionalidade reforça o anteriormente exposto.

Outro ponto relevante é o fato de que o art. 2º do Pacto de São José da Costa Rica determinou a todos os signatários que adotassem todas as medidas legislativas ou de qualquer outra natureza necessárias para tornar efetiva a garantia dos direitos e liberdades estabelecidos pelo próprio Pacto. (aqui).

Acrescente-se, ainda, que é princípio de Direito Internacional Público aquele segundo o qual o signatário de um tratado não poderia invocar o direito interno como escusa para descumprir aquele. (Art. 27, da Convenção de Viena, 1969).

O Decreto federal n. 7.030/2009 (aqui), que incorporou formalmente a Convenção de Viena ao ordenamento nacional, não faz qualquer ressalva quanto à aplicação do mencionado artigo 27.

Não obstante, vale observar que o Brasil antes mesmo de haver formalmente incorporado a Convenção de Viena ao ordenamento jurídico nacional sempre a respeitou com base no costume jurídico internacional.

Por todo o exposto, cremos que há elementos consistentes para concluir que a submissão integral do Brasil à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos é totalmente compatível com a soberania nacional e com os princípios de Direito Internacional.

* corregido às 22h55min.

sexta-feira, 21 de março de 2014

A jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Direito Brasileiro. O caso do duplo grau de jurisdição.

A sujeição do Brasil à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – Parece que não há dúvidas quanto a isso. Por meio do Decreto Legislativo 89, de 03 de dezembro de 1998, o Congresso Nacional aprovou a solicitação de reconhecimento obrigatório da jurisdição a CIDH. O Decreto  n.4.463/2002 reconheceu como obrigatória e por prazo indeterminado a jurisdição daquela Corte.
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Os tratados sobre direitos humanos são normas constitucionais ou supralegais? – Os direitos humanos objeto de julgamento pela CIDH estão consignados basicamente na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (São José da Costa Rica, 1969), que foi promulgada e internalizada no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto n. 678/1992.
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O art. 5º, § 2º, da Constituição da República assegura que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais.
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Predomina no STF o entendimento de que o tratado internacional sobre direitos humanos é considerado como norma supralegal, mas infraconstitucional (RE 466.343-1/SP).
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Vale observar que o Ministro Celso de Mello entendeu que os tratados internacionais de direitos humanos têm estatura constitucional. Mas foi voto vencido. A doutrina autorizada de Valério Mazzuoli também critica a posição do STF com argumentos bastante convincentes. De outra parte, porém, reconhece que esse entendimento do STF já significa um avanço em relação à posição anterior ainda mais conservadora (Curso de Direito Internacional Público, São Paulo, RT, 2011, pp. 375-384).
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Com a nova configuração do STF, o entendimento pode ser alterado.
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O direito de recorrer de sentenças condenatórias – A ausência do duplo grau de jurisdição foi um dos pontos questionados no processamento da AP 470 (“mensalão”).
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Segundo a Convenção Americana de Direitos Humanos, todo aquele considerado culpado de um delito tem o direito de recorrer da decisão ante o juiz ou tribunal superior (Art. 8, “h” - aqui). 
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A jurisprudência da CIDH enfrentou o tema detidamente no conhecido caso Barreto Leiva v. Venezuela. A única exceção admitida ao direito de recorrer seria se o Estado signatário tivesse feito ressalva com relação a este dispositivo ao firmar a Convenção. Nesse sentido, vide especialmente o parágrafo n. 86 da referida decisão.
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Como se poderia respeitar o direito de recorrer dos réus na AP 470? – Todos (inclusive os que não ocupavam cargo público) foram julgados pelo STF com base no art. 102, I, b, da Constituição, que estabelece o privilégio de foro. Considerando que é a última instância, o julgamento penal restou reduzido a uma única decisão.
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Mesmo aqueles que tiveram direito aos Embargos infringentes, o julgamento se deu pelo mesmo órgão e não por outro superior.
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Diante da situação, como respeitar o direito de recorrer dos réus sem descumprir a Constituição Federal?
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Caso se entendesse os tratados sobre direitos humanos como normas constitucionais – tese com a qual concordamos –, o problema seria menos complexo. Tal direito figuraria como parte integrante do art. 5º que elenca os direitos fundamentais. Haveria, então, tensão com o art., 102, I, b da mesma Constituição. Aplicando a ponderação de interesses, prevaleceria o art. 5º. O direito ao privilégio de foro definitivamente não é um direito fundamental. Muito ao contrário, configura uma exceção ao princípio da igualdade, um verdadeiro privilégio como o próprio termo indica. Por isso,  o direito ao privilégio de foro não tem aptidão para preponderar sobre um direito humano e fundamental.
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Considerando a posição atual do STF de entender tais tratados como normas supralegais – mas infraconstitucionais – o caminho para evitar a violação de direitos humanos seria interpretar o Código de Processo Penal, suas normas complementares e o Regimento Interno do STF à luz da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos.
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O Código de Processo Penal é explícito:  “Art. 1º O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados: I - os tratados, as convenções e regras de direito internacional; (...)”. Portanto, fácil é a conclusão de que o processo penal não pode tramitar em descompasso com o Pacto de São José da Costa Rica.
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O Regimento do STF, que foi recepcionado como lei formal na ordem jurídica brasileira, também não poderá contrariar qualquer tratado, afinal, os tratados são considerados, pelo menos, normas supralegais. A Lei que contrariar um tratado deverá ser considerada inválida.
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A partir de uma perspectiva de superação do positivismo legalista, mas sem desatender a Constituição da República, acredito que a solução seria remeter a AP 470 para uma Turma do STF para que julgasse em primeira instância e, posteriormente, o Pleno, em grau de recurso.
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Consequências de eventual sentença da CIDH – No caso da AP 470, o direito de recorrer não foi atendido em sua plenitude. Houve réus que sequer tiveram direito à interposição de embargos infringentes. O caso, como se viu inicialmente, pode ser objeto de apreciação pela CIDH. No caso de eventual sentença favorável aos demandantes junto à CIDH, quais seriam os efeitos no Brasil?
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Inicialmente, é preciso registrar que a CIDH não significa uma instância superior ao STF. Portanto, não haveria um novo julgamento da causa. A sentença poderá declarar a existência violação de direito humano, determinar ao Brasil (sujeito passivo) a sua restauração imediata e, se for o caso, fixar indenização ou compensação justa.
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Não é procedente o argumento de que a Corte está voltada apenas para a responsabilidade civil, como se costuma alegar até com certo desdém.
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No caso do duplo grau em análise, uma decisão CIDH que venha a declarar a violação de direitos humanos também determinaria ao Brasil que fosse refeito parte do julgamento da AP 470 de forma a dar a oportunidade ao réu de recorrer da decisão condenatória. O acórdão do STF deveria, então, ser desconstituído.
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Poder-se-ia questionar, ainda, o limite da coisa julgada. Como poderia o STF julgar novamente tendo o acórdão condenatório transitado em julgado? Como superar a cláusula pétrea dos efeitos da coisa julgada prevista pelo art. 5º, XXXVI, da Carta da República?
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Com uma nulidade deste quilate, não é possível suceder o trânsito em julgado. É a mesma racionalidade que a jurisprudência brasileira tem empregado para admitir a conhecida “querela nullitatis.” O exemplo clássico é o da ausência da citação dos proprietários de um imóvel na ação de usucapião. A qualquer tempo a sentença poderá ser desconstituída em razão da gravidade da lesão do direito. 

segunda-feira, 3 de março de 2014

O Direito como ficção literária e o papel do juiz

Os livros de literatura sempre compartilharam espaços com os jurídicos em minha mesa de cabeceira.

Por um lado, a ficção, o exercício do imaginário que revela a alma humana com seus dilemas e angústias.

Por outro, as narrativas destinadas a compreender/aplicar o direito como um sistema voltado a estabilizar ou manter estáveis as relações interpessoais do mundo real.

Mais que o simples uso das palavras, há aspectos que aproximam a literatura e o direito. Um desses é como o direito trabalha com o fato.

Se examinarmos a experiência jurídica, vamos constatar que o fato social se qualifica como jurídico na medida em que o sistema de direito dê tratamento a ele.

Uma vez acontecido o fato jurídico, muitas vezes se faz necessário levá-lo ao Judiciário. Na prática, o fato será comunicado por meio de uma peça narrativa (petição inicial). O réu da ação responde apresentando também sua narrativa sobre o fato. Por fim, o juiz decretará a versão que prevalecerá por meio da sua própria narrativa.

Não há dúvidas de que a narração é aspecto comum entre o direito e a literatura. Mas isso é apenas superficial.

Os relatos de todos os envolvidos – inclusive o final, do juiz – não passam de versões narrativas de um fato. A versão não se confunde com o fato, porque ambos têm natureza e tempos distintos. A versão é apenas uma tentativa atual de resgatar o fato passado. Por mais documental que seja o fundamento da pretensão levada a juízo, deve ter como instrumento uma narrativa.

Nesse sentido, a narrativa jurídica é ficcional tal qual a literária. Afinal, nenhuma das duas narrativas tem condições de aprisionar o fato. Ambas têm o objetivo imediato de, por meio das palavras, seduzir o destinatário para que apreenda o fato na consciência. E, nessa sedução, é o imaginário humano que se vê exigido tanto do lado do narrador quanto do leitor. Não se pode esquecer que é também no imaginário que repousam os sonhos, os medos, as aversões e os desejos mais íntimos do ser humano.

Consciente dessa característica literária do direito, o juiz adquire mais importância do que normalmente lhe é reconhecida. O juiz, como o redator da versão final do fato, deve desempenhar um papel de equilíbrio frente às partes que se encontram em conflito.

Toda essa circunstância exige do juiz a manutenção do equilíbrio emocional como um mandamento sagrado. Deve estar apto a escutar e a reconsiderar suas posições não só como pressuposto de civilidade, mas como fruto da dialética processual. Por isso, também não poderá ser refém de sua vaidade ou de suas convicções ideológicas ou políticas. Somente assim poderá controlar a vocação do imaginário de surpreender e trair.

Portanto, não está apto para a magistratura aquele que sistematicamente perde a calma ao ser contestado ou contrariado, porque isso comprometerá a construção de sua narrativa. Será inevitavelmente traído por seu imaginário. E, no exercício da judicatura, correrá sério risco de converter o direito em uma comédia ou mesmo em uma tragédia.